INTRODUÇÃO
– Na sequência do estudo do sermão do monte, veremos o ensino de Jesus sobre a vingança.
– O discípulo de Jesus não pode ser vingativo.
I – A LEI DE TALIÃO
– Na continuidade do estudo do sermão do monte, prosseguindo a comparação entre a Sua doutrina e a lei de Moisés, o Senhor Jesus vai tratar de uma das “pedras de toque” do sistema mosaico, que é a chamada “lei de talião”.
– “…A lei de talião (em latim: lex talionis; lex: lei e talio, de talis: tal, idêntico), também dita pena de talião, consiste na rigorosa reciprocidade do crime e da pena — apropriadamente chamada retaliação.
Na perspectiva da lei de talião, a pessoa que fere outra deve ser penalizada em grau semelhante, e a punição deve ser aplicada pela parte lesada.…” (Lei de talião. In: WIKIPÉDIA. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Lei_de_tali%C3%A3o Acesso em 01 mar. 2022).
– Para entendermos o surgimento da “lei de talião”, devemos observar que, nos primeiros dias da história da humanidade, não havia uma organização social que impusesse uma ordem, que exercesse a justiça.
Notemos que, na descrição dos dias antediluvianos, havia uma verdadeira anarquia, ou seja, uma situação de ausência de governo, onde as pessoas faziam o que bem queriam, a ponto de se ter multiplicado a violência e se ter generalizado a corrupção em toda a humanidade (Gn.6:1-12), o que levou o Senhor a destruir todos os homens, com exceção de Noé e sua família.
– Após o dilúvio, entretanto, o Senhor, ao firmar o pacto com Noé, estabeleceu o governo humano, determinando que houvesse, por parte dos próprios homens, o exercício da justiça, ou seja, que se castigasse e punisse todo aquele que contrariasse a lei, que desobedecesse aos ditames estabelecidos pelo próprio Deus como conduta do ser humano.
– Os mestres da lei judaicos entendem que, já no Éden, Deus havia estabelecido este “governo humano”, esta necessidade de aplicação da justiça, o que, entretanto, somente passaria a ser observado após o dilúvio, quando o Senhor reafirma o que se costumou denominar de “sete leis dos filhos de Noé”, princípios que devem ser observados por todos os homens, como, aliás, ficou bem delineado no Concílio de Jerusalém, quando o Espírito Santo orientou os discípulos que tais parâmetros continuavam válidos e deveriam ser observados pelos cristãos gentios (At.15:28,29).
OBS: “No Talmude Babilônico, no tratado Sanhedrin 56 a-b, encontramos a descrição destes princípios que estariam presentes na ordem dada por Deus ao homem, “in verbis”:
“… Nossos Rabbis ensinaram: sete preceitos foram ordenados aos filhos de Noé: leis sociais para prevenir a blasfêmia, idolatria, adultério, derramamento de sangue, roubo e comer carne cortada de um animal vivo. (…).
Rabbi Johanan respondeu: O escrito diz: E o Senhor Deus ordenou o homem dizendo: de toda a árvore do jardim comerás livremente.
E [Ele] ordenou refere-se [a observância] leis sociais, e, por isso, está escrito Porque eu o tenho conhecido, que ele há de ordenar a seus filhos e a sua casa depois dele, para que guardem o caminho do SENHOR, para agirem com justiça e juízo [Gn.18:19].
O Senhor — é [uma proibição contra] a blasfêmia, e, por isso, está escrito, Aquele que blasfemar o nome do SENHOR será morto [Lv.27:16]. Deus — é [uma injunção contra] a idolatria, pois está escrito, Não terás outros deuses diante de Mim [Ex.20:3].
O homem — refere-se ao derramamento de sangue [assassinato], pois está escrito: Quem derramar o sangue do homem, pelo homem o seu sangue será derramado; [Gn.9:6] – Dizendo – refere-se ao adultério, pois está escrito
Eles dizem: Se um homem despedir sua mulher, e ela se ausentar dele e se ajuntar a outro homem [Jr.3:1]. – De toda árvore do jardim — proibição do roubo [desde que era necessário autorizar Adão para comer das árvores do jardim, segue-se que, sem tal autorização, i.e., quando algo pertence a outrem — isto é proibido – nota do editor] –
Comerás livremente – proibição de consumo carne cortada de um animal vivo [interpretando isso: comerás livremente daquilo que está pronto para comer, mas não de um animal enquanto está ainda vivo… – nota do editor]. Quando veio o Rabbi Isaac, ele ensinou uma interpretação diferente.
E Ele ordenou — refere-se à idolatria; Deus [hebraico “ ‘Elohim’] para a lei social. Agora ‘Deus” se refere corretamente a leis sociais, pois está escrito, Se o ladrão não se achar, então, o dono da casa será levado diante dos ’elohim [juízes] [Ex.22:8].
Mas como “e Ele ordenou’ significa a proibição da idolatria? – Rabbi Hisda e Rabbi Isaac ben Abdimi- uns citaram o verso e depressa se tem desviado do caminho que eu lhes tinha ordenado; fizeram para si um bezerro de fundição etc.[Ex.32:8].
E outros citaram Efraim está oprimido e quebrantado no juízo, porque quis andar após a vaidade [Os.5:11] [Ex.32:8].…” (Disponível em: http://www.come-and-hear.com/sanhedrin/sanhedrin_56.html#56b_12 Acesso em 17 ago. 2015 (tradução nossa de texto original em inglês).
– Uma das destas leis era precisamente a de exercer justiça, castigando aqueles que não observassem as regras estabelecidas por Deus. Seria o homem o responsável pela aplicação da justiça, pela punição daquele que transgredisse as leis e as normas. Daí porque se denominar esta instituição de “governo humano”.
– Lamentavelmente, este “governo humano” se rebelou contra Deus no episódio da torre de Babel, quando Ninrode, que reinava sobre a comunidade pós-diluviana, desafiou a própria ordem divina dada a Noé para que os homens se espalhassem e povoassem a terra, tendo sido, também, o que deu origem à idolatria, pois, a partir de Ninrode, em Babel, os governantes passaram a se divinizar e a querer ser adorados, dando origem ao
“mistério da injustiça”.
OBS: “…Foi em Babilônia, após o dilúvio, que a mesma atitude de negação de Deus se manifestou, particularmente através de Ninrode e Semíramis. Era o mistério da injustiça, referido pelo apóstolo Paulo, mais uma vez operando desde a expulsão de Adão e Eva do Éden.
O objetivo era a organização de uma igreja falsa, estruturada dentro de um sistema religioso no qual fosse adorada uma falsa trindade.
Dentro dessa organização o próprio Satanás estava (e está) preparando o mundo para a sua manifestação futura, quando reinará por um pouco de tempo sob a forma do Anticristo.
O princípio é a glorificação do ser humano, divinizador de reis e imperadores, o culto à personalidade. Somente dentro de tal sistema compreende-se a deificação dos césares e dos grandes homens, aos quais se erigiam templos e em sua honra se ofereciam sacrifícios e libações.…” (ALMEIDA, Abraão de Almeida. Babilônia ontem e hoje, p.15)
– Para que se preservasse a ordem pública e se fizesse justiça, necessário se fez que se instaurasse um governo em cada sociedade humana, notadamente após o espalhamento dos homens por conta da confusão das línguas, governo este que deveria, por ordem divina, castigar os maus e louvar os bons (Rm.13:1-5).
As autoridades são constituídas por Deus para que vinguem e castiguem o que faz o mal, sempre lembrando que quem diz o que é bom ou o que é mau é o próprio Senhor, tanto que as autoridades são chamadas de “ministros de Deus”, ou seja, estão ali para fazer valer o que o Senhor estabeleceu como certo ou errado.
– Entretanto, como já dito, os governantes cedo se assenhorearam ilegitimamente deste poder de dizer o que é bom e o que é mau, corrompendo, assim, a sua função de aplicar a justiça divina, gerando o “mistério da injustiça”, que tanto vemos aumentar e prevalecer em nossos dias.
– Dentro deste escopo, surge a chamada “lei de talião”, que é a determinação de que a pessoa deve ser castigada na mesma medida do mal que causou. “Talis, qualis”, daí o nome “talião”. Assim, se promoveu, por exemplo, a morte de alguém, deve também ser morto.
– Esta lei de talião já é vista no chamado Código de Hamurábi, a mais antiga lei de que se tem conhecimento, promulgada entre os sumérios, de Ur, região de onde saiu Abraão, na Mesopotâmia, que é o início da civilização pós-diluviana (Gn.11:2).
OBS: Alguns dispositivos do Código de Hamurábi preveem a lei de talião, por exemplo: “23º – Se o salteador não é preso, o roubado deverá diante de Deus reclamar tudo que lhe foi roubado; então a aldeia e o governador, em cuja terra e circunscrição o roubo teve lugar, devem indenizar-lhe os bens roubados por quanto foi perdido. (…) 25º
– Se na casa de alguém aparecer um incêndio e aquele que vem apagar, lança os olhos sobre a propriedade do dono da casa, e toma a propriedade do dono da casa, ele deverá ser lançado no mesmo fogo.…” (Código de Hamurábi. Disponível em: https://www.pravaler.com.br/wp-files/download/codigo-de-hamurabi-idioma-portugues-download-pdf.pdf Acesso em 01 mar. 2022).
– A lei de Moisés trouxe esta “lei de talião”, seguindo a tendência das legislações então existentes. Em Ex.21:23-25, o Senhor assim determinou: “Mas, se houver morte, então, darás vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé, queimadura por queimadura, ferida por ferida, golpe por golpe”.
– Portanto, a “lei de talião” foi prevista pelo próprio Deus, faz parte da lei de Moisés, como que a confirmar a lei de talião, que caracteriza, portanto, todo o sistema mosaico de legislação e que aparenta ser a expressão da justiça, visto que se tem a imposição ao agressor do mesmo mal que causou ao agredido, nada mais justo, pois.
II – O ENSINO DE JESUS SOBRE A LEI DE TALIÃO
– Ora, diante de um quadro deste, nada mais natural que se esperasse do Senhor Jesus que haveria um apoio incondicional à “lei de talião”.
No entanto, o que disse Cristo? “Ouvistes o que foi dito: Olho por olho, dente por dente. Eu, porém, vos digo que não resistais ao mal; mas, se qualquer te bater na face direita, oferece-lhe também a outra; e ao que quiser pleitear contigo e tirar-te a vestimenta, larga-lhe também a capa; e, se qualquer te obrigar a caminhar uma milha, vai com ele duas. Dá a quem te pedir e não te desvies daquele que quiser que lhe emprestes” (Mt.5:38-42).
– Em mais uma demonstração de que os Seus discípulos estão em um patamar superior ao da lei, o Senhor Jesus nos mostra que não se pode resistir ao mal, ou seja, se deve admitir que ninguém é bom, a não ser o próprio Deus e que, por isso mesmo, não devemos nos achar “superiores” aos outros, a ponto de sermos “critério de justiça”.
– Quando adotamos a “lei de talião”, estamos assumindo que a pessoa agredida tem “direitos”, “merece uma reparação”, “é uma pessoa inocente”, é “a pessoa boa” e que o agressor é um “vilão”, é “o errado”, “merece ser punido”, é “a pessoa má”.
– No entanto, o “reino de Deus” vindo até o mundo mostra que ninguém é bom, a não ser Deus (Mt.19:17; Mc.10:18; Lc.18:19), mesmo os aparentes cumpridores da lei, como o Senhor nos mostra no episódio a envolver o chamado “mancebo de qualidade”.
– Foi o Senhor quem determinou, na lei de Moisés, que se adotasse a lei de talião, mas isto não significa que a pessoa agredida se sinta melhor que a agressora. A lei de talião não corrobora uma mentalidade de que haja pessoas boas e outras, más. Todos são maus, como o próprio Senhor dirá no próprio sermão do monte (Mt.7:11).
– A partir do instante que reconhecemos nossa maldade, nossa pecaminosidade, confessamos nossos pecados e nos entregamos a Cristo, crendo no Evangelho, ou seja, assumindo que somos pecadores e precisamos de um Salvador e que dependemos integralmente d’Ele para podermos chegar aos céus.
– Diante de tal reconhecimento, assumimos que somos maus e, deste modo, não mais nos consideramos superiores aos outros, sabendo, ademais, que as pessoas que nos agridem, não o fazem porque o querem, mas porque são escravos do pecado, como também éramos. Nosso adversário não são as outras pessoas, mas as hostes espirituais da maldade (Ef.6:12).
– Com efeito, como diz Agostinho (354-430), a pena de talião impõe limites ao ódio, “in verbis”: “Isso foi ordenado, na verdade, para conter a fúria dos ódios que geralmente nascem mutuamente e para moderar os espíritos perturbados. Quem se satisfaz facilmente com uma indenização equivalente ao prejuízo?
Não vemos muitas vezes que os homens, ligeiramente ofendidos, tentam matar, têm sede de sangue e não se cansam de ferir seus inimigos?
A este homem, desejoso de vingança imoderada e injusta, a lei, estabelecendo um modo justo de agir, impõe a pena de Talião. Ou seja, que ele receba a mesma punição que pode ser equivalente à injustiça que cometeu. O que não estimula a fúria, mas estabelece seus limites…” (Contra Faustum 19,25. In: Catena aurea, Mt.5:38-42. Disponível em: https://hjg.com.ar/catena/c62.html Acesso em 01 mar. 2022) (tradução Google de texto em espanhol).
– Entretanto, quando nos tornamos discípulos de Jesus, não podemos mais odiar, o ódio tem de ser afastado de nossos corações, pois passamos a amar a Deus, já que o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo (Rm.5:5), que veio habitar em nós quando cremos em Cristo (Jo.7:38,39) e, ao amarmos a Deus, passamos, também, a amar o próximo (I Jo.4:20,21).
– Se amamos a Deus e amamos ao próximo, não se pode mais adotar a lei de talião, porque, como bem disse
Agostinho, é ela um “limite ao ódio”, só que não podemos mais odiar o próximo.
– Ainda repetindo Agostinho, o que vemos é o Senhor Jesus a dizer: “…foi dito aos antigos: “Você não deve se vingar injustamente”, mas eu digo a você: “Não se vingue”, que é o cumprimento da lei.
Por essas palavras pode-se entender um acréscimo à lei feita por Jesus Cristo. É mais natural pensar que fortalece a lei, ou seja, que proíbe absolutamente a vingança para ter mais certeza de não ultrapassar os limites da vingança, não se vingar.…” (op.cit).
– Segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, vingança é o “ato lesivo, praticado em nome próprio ou alheio, por alguém que foi real ou presumidamente ofendido ou lesado, em represália contra aquele que é ou seria o causador desse dano”. A palavra vem da raiz latina “vindic-“, cujo significado é “reclamação em juízo”.
– Não há como não nos esquecermos da primeira ofensa ao próximo registrada nas Escrituras, o homicídio de Abel pelo seu irmão Caim. Ali, o Senhor mostra que o sangue de Abel, que era justo (Mt.23:35), clamava por justiça diante de Deus (Gn.4:10; Hb.11:4).
– A prática do mal, portanto, reclama a reparação, que é feita pelo próprio Senhor, não por Abel, até porque Abel estava morto, e tal se dá não apenas com Abel mas com todos os justos cujo sangue foi derramado, como nos diz Cristo (Mt.23:35; Lc.11:51), referindo-se ao Antigo Testamento, mas que continuou a ocorrer e será assim durante toda a história (Ap.16:4-6).
– Quando estabeleceu o governo humano, o Senhor, no pacto noaico, reafirmou que o derramamento do sangue seria requerido por Ele próprio, visto que o homem é imagem e semelhança de Deus (Gn.9:5,6).
– Bem se verifica, pois, que a “vingança”, ou seja, a reparação da justiça, a punição do que errasse era algo que deveria ser da alçada do Senhor, devendo os homens, tão somente, limitar o ódio, evitando, assim, a desproporção na resposta da prática do mal.
– Como já vimos, os primeiros códigos legais da humanidade não se pautavam por esta proporcionalidade. Embora tivessem alguns dispositivos em que se fazia esta proporcional retaliação, havia muitos excessos e abusos, motivados pelo surgimento do “mistério da injustiça”.
– No entanto, vindo a lei mosaica, a regra geral era a do talião, a proporcionalidade, visando limitar o ódio, mas não era este o objetivo, a meta divina para o ser humano. Pelo contrário, o ideal era que, assim como o justo Abel, todos clamassem a Deus para que se fizesse a justiça, que se deixasse a vingança ao Senhor, que é o juiz de toda a terra (Gn.18:25).
– Se este clamor somente se tornava efetivo quando o próprio justo morria, sem condições de ele mesmo fazer justiça, queria o Senhor que isto se fizesse ordinariamente, que os homens cessassem de ter o ódio para com o próximo, deixando a Deus o exercício da vingança, pois a vingança cabe ao Senhor (Dt.32:35; Sl.94:1; Rm.12:19; Hb.10:30).
– Os próprios israelitas tiveram esta noção quando foram constituídos como instrumentos da vingança do Senhor com relação aos primitivos habitantes de Canaã (Nm.31:3; Dt.9:4,5), sabendo que, se desobedecessem a Deus, eles é que seriam alvo da vingança do Senhor (Lv.26:25).
– No entanto, a lei de talião, embora fosse um avanço em relação às legislações que se excediam na punição, permitindo o descontrole e a desproporção nas punições e castigos (e veja que, mesmo entre os israelitas havia excessos, tanto que as Escrituras registram, em tom de elogio, o rei Amazias, precisamente por não ter se excedido ao punir os assassinos de seu pai – II Rs.14:5,6; II Cr.25:3,4), ainda era algo sobremodo imperfeito, vez que mantinha ainda o ódio como conduta a ser tolerada e permitida.
– Tanto assim é que, mesmo quando matava acidentalmente, se não estivesse na cidade de refúgio, poderia ser legitimamente morto pelo “vingador do sangue” (Nm.35:19,24,27). A propósito, a cidade era de refúgio precisamente contra o “vingador do sangue” ((Nm.35:12; Js.20:3).
– Vemos, com clareza, que a lei apontava o pecado e que todos os sacrifícios efetuados em seu âmbito não tinham o condão de eliminar ou tirar o pecado, mas tão somente de cobri-lo (Sl.32:1). A lei de talião punha limite ao ódio ao próximo, mas não eliminava o ódio ao próximo e o desejo do homem de “se fazer Deus” e assim “realizar justiça com suas próprias mãos”.
– As autoridades deveriam se comportar como “vingadoras de Deus para castigar o mal” (Rm.13:4), sem excessos e buscando implementar as normas estatuídas pelo Senhor, mas, como já o dissemos, o “mistério da injustiça” pervertia tal estado de coisas.
– Agora, Cristo nos mostra que, com a Sua vinda ao mundo, tirando o pecado do mundo (Jo.1:29), não haveria mais de se ter “vingadores” por parte dos indivíduos, Seus discípulos não poderiam ser “vingadores do sangue”, mas teriam agora de reconhecer que a vingança pertence ao Senhor e que é Ele “o vingador de todas estas coisas” (I Ts.4:6).
– Ao nos tornarmos servos de Deus, ao renunciarmos a nós mesmos (sem o que não poderemos ser discípulos de Jesus – Lc.14:33), abrimos mão dos “direitos de vingança” e passamos a entregar totalmente a nosso Senhor a vingança, sabendo que somos tão somente Sua propriedade, sem vontade própria e sem qualquer pretensão de “fazer justiça com as nossas mãos”.
– Eis o motivo pelo qual, doravante, já não mais observamos a lei de talião, nem por ela nos pautamos, porque nos encontramos agora sob a égide do amor de Deus, pelo qual devemos amar o próximo, querendo a sua salvação e deixando ao Senhor, o vingador de todas as coisas, a quem pertence a vingança, a tomada de decisões concernentes à reparação do mal cometido.
– À evidência que, em tal comportamento, não estamos aqui a eliminar a figura da autoridade, que é ministro de Deus para vingar e castigar os maus, tanto que o próprio Jesus, no sermão do monte, disse que os Seus discípulos sofreriam a ação das autoridades caso não optassem pela reconciliação (Mt.5:24-26).
– Como discípulos de Jesus, devemos buscar a paz com todos os homens (Rm.12:18; Hb.12:14), procurando a reconciliação antes de ir às autoridades, sabendo que perante elas sofreremos a ação dos
“ministros de Deus” mesmo que nosso adversário não o sofra, como também deixando a Deus a execução da vingança, que a Ele pertence.
– O discípulo de Cristo sabe que é imperfeito e que não tem o controle de todas as coisas e, que, portanto, deve deixar tanto às autoridades quanto a Deus a realização da justiça e do que é certo.
A nós, como testemunhas d’Aquele que tanto amou o mundo que Se entregou pela humanidade, cabe tão somente não resistir ao mal, sofrendo o dano, dando a outra face quando nos baterem na primeira (Mt.5:39).
– Esta atitude de entregar a outra face, não fazer questão dos “direitos”, das “razões”, dos “acertos” é a própria negação de si mesmo que é um requisito para sermos discípulos do Senhor (Mt.10:38; Mc.8:34; Lc.9:23).
– Não há como alcançarmos a salvação sem a abnegação, sem que crucifiquemos o nosso “eu”, a natureza pecaminosa, a carne, com suas paixões e concupiscências (Gl.5:24).
É o nosso “eu” que entende ter “direitos”, ter “méritos” e este sentimento faz com que a pessoa queira a ”vingança”, o “acerto de contas”, a “reparação”, achando-se “superior” ao que o agrediu.
– Entretanto, o sentimento que deve ter o discípulo de Cristo é o mesmo sentimento de Nosso Senhor e Salvador, o sentimento da humildade, não se considerando superior aos outros (Fp.2:3), sendo sempre humilde para que não seja humilhado (Lc.14:7-11).
– O Senhor Jesus nos ensina que os Seus discípulos não são como os gentios que retribuem o mal com um mal excessivo, nem tampouco como os israelitas, que retribuíam o mal com um mal proporcional (a lei de talião), mas pessoas que, por serem filhas de Deus, não retribuem o mal com o mal, mas, sim, devolvem o mal com o bem (Rm.12:17,21).
– É o ensino de Agostinho, que vale a pena transcrever: “…A justiça dos fariseus, que consiste em não ultrapassar os limites da vingança, é uma justiça inferior.
É o princípio da paz, mas a paz perfeita remove toda vingança desde o início. Assim, entre a primeira, que é um excesso da lei (que consiste em devolver mais mal do que se recebeu) e a perfeição que o Senhor ordena a Seus discípulos (que consiste em não devolver mal com mal), há um meio-termo : devolver apenas o mal recebido, por isso é necessário ir da maior discórdia à maior harmonia.
Aquele que causa o mal primeiro, este é o que está principalmente separado da justiça. Aquele que não ofende ninguém a princípio, mas depois de ser ofendido, fere mais, separa-se um pouco da maior iniquidade. E aquele que devolve o que recebeu já concede algo.
É muito justo que quem ofendeu primeiro seja mais ferido. Nosso Senhor Jesus Cristo, que veio para cumprir a lei, aperfeiçoou esta justiça iniciada, não severa, mas misericordiosa.
Ele nos ensinou que os dois graus que existem entre a velha justiça e a nova devem ser conhecidos. Porque há aqueles que não retribuem tanto, mas menos, e daí vem o fato de que eles não se recompensam de forma alguma, o que parece pouco ao Senhor, se você não estiver disposto a fazer ainda mais.
Pois que não diz “não retribua mal com mal”, mas diz “não resista contra o mal”, para que, assim, não só não retribua o mal que lhe foi feito, como também não resista a outro mal que está sendo causado para você.
É precisamente isso que se expõe de forma muito clara quando se diz: “Mas se alguém te ferir na face direita, oferece-lhe também a outra”.
Que isso pertence à verdadeira misericórdia, é sentido especialmente por aqueles que servem a quem muito amam, ou crianças, ou frenéticos, que muitas vezes sofrem tanto, e que, se o bem dos pacientes o exigir, se prestam a sofrer ainda mais.
O Senhor ensina, então, como médico de almas, que Seus discípulos buscam acima de tudo a salvação daqueles, para cujo bem foram enviados, e que sofrem com espírito calmo todas as suas fraquezas.
Toda iniquidade, portanto, nasce da imbecilidade da alma, porque não há nada mais inocente do que uma pessoa aperfeiçoada em virtude para o bem de quem foram enviados e que padeçam com tranquilidade todas as suas fraquezas.…” (Sermão Domini 1, 19. In: Catena aurea. Mt.5:38-42. Disponível em: https://hjg.com.ar/catena/c62.html Acesso em 01 mar. 2022).
– Como se pode perceber nesta lição deste grande pai da igreja, o patamar espiritual dos filhos de Deus, dos discípulos de Jesus é superior ao da justiça dos escribas e fariseus, a ponto de não haver simplesmente limitação do mal, mas a sua completa erradicação, pois, além de o servo de Cristo não retribuir o mal com o mal, ainda não resiste ao mal praticado contra si, buscando, assim, a salvação do próximo, o seu bem.
O mal é simplesmente ignorado, desprezado, ante a confiança que o salvo tem de que nada lhe poderá impedir a vitória sobre o mal, pois o bem é sempre superior ao mal.
– Lembremo-nos, a propósito, do primeiro mártir do Cristianismo, Estêvão, que não só não retribuiu o mal que lhe causaram com o mal, mas ainda obteve para seus algozes o perdão pelo pecado que cometiam ao matá-lo.
O mal que lhe praticaram não o impediu de chegar aos céus e o perdão que concedeu fez com que fosse recebido com honra pelo próprio Jesus na Sua chegada à eternidade, como, ainda, foi, sem dúvida alguma, o gérmen do processo que levou à conversão de Paulo e de todo o seu magnífico trabalho na obra do Senhor.
– Quando amamos a Deus e ao próximo, não retribuímos o mal com o mal, mesmo sendo este mal proporcional, mas devolvemos o mal com o bem, porque somos cristãos, “pequenos Cristos”, que, pelo gozo que nos está proposto, desprezamos as afrontas e suportamos a cruz e as contradições dos pecadores (Hb.12:2,3).
– Devemos agir como Nosso Senhor que, quando injuriado, não injuriava e, quando padecia, não ameaçava, mas entregava-Se Àquele que julga justamente (I Pe.2:23).
– A retribuição com o mal, ainda que proporcional, segue parâmetros humanos, leva em conta algum “mérito” da parte do homem, mas, quando somos alcançados pelo amor de Deus, percebemos que mérito algum há da parte do ser humano, que é pecador e merecia tão somente a morte, e, por isso mesmo, reconhecendo tal realidade, fiamo-nos tão somente na graça de Deus, no Seu favor imerecido, querendo que todos se salvem e, para tanto, não podemos jamais praticar o mal, mas sofrê-lo a fim de glorificarmos o Senhor.
– Sabemos que Deus é justiça (Gn.18:25; Jr.23:5) e que, a Seu tempo, e de modo perfeito, tomará as devidas providências para que se exerça a Sua vingança (Rm.12:19).
E a atitude que devemos ter é a de “dar lugar à ira”, ou seja, não guardar rancor, não agasalhar o sentimento de vingança, mas permitir que a ira se vá, se dissipe, como quando abrimos um ambiente que está cheio de gás para evitar que haja alguma explosão.
– Somos propriedade de Deus em Cristo Jesus (I Co.1:30) e, deste modo, não nos incumbe mais tomar providências para que o mal cometido contra nós seja retribuído por nós, mas deixemos tudo nas mãos d’Aquele que julga justamente. Aleluia!
– Como afirma o príncipe dos pregadores britânicos, Charles Haddon Spurgeon (1834-1892): “…A não resistência e a tolerância devem ser a regra entre os cristãos.
Eles devem suportar ilusões pessoais sem entrar em conflito. Eles devem ser como a bigorna quando os homens maus são os martelos, e assim eles devem ser vencidos pelo perdão paciente. A regra do tribunal não é para a vida comum, mas o governo da cruz e o sofredor eterno é para todos nós.
No entanto, quantos consideram tudo isso fanático, utópico e até covarde! O Senhor, nosso Rei, quer que suportemos e deixemos, e conquistemos por paciência poderosa. Nós podemos fazer isso?
Como somos servos de Cristo se não temos o Seu espírito?…” (A primeira bem-aventurança. Sermão pregado no ano de 1873 no Tabernáculo Metropolitano e publicado em 5/8/1909. Disponível em: https://www.spurgeongems.org/sermon/chs3156.pdf, p.9. Acesso em 01 mar. 2022) (tradução Google de texto em inglês).
– Não se trata apenas de ser indiferente ao mal, mas de se fazer o bem. O súdito do reino de Deus não se encontra simplesmente no nível do dever, mas tem de estar na altura do amor.
Por isso, não só deve aceitar que se lhe tire a vestimenta, como deve, também, entregar a capa que nem foi querida pelo próximo. Não só deve andar uma milha com o próximo, mas também com ele caminhar a segunda milha.
– Como ensinava o saudoso pastor Severino Pedro da Silva (1946-2013), a primeira milha é “a milha do dever”, aquela que somos obrigados a caminhar por força das normas, das convenções, dos costumes, das tradições. Já a segunda milha é “a milha do amor”, aquela que caminhamos porque queremos a salvação do próximo, a sua libertação do pecado, a sua entrada em comunhão com Nosso Senhor e Salvador.
– Enquanto a lei de talião defendia uma limitação na retribuição, um basta na prática do mal, uma contenção na reação maligna a uma atitude má, o Senhor Jesus nos ensina a praticar o bem, a demonstrar o amor, tomando uma atitude que não só absorve o mal praticado, mas que visa trazem um bem maior a quem ofendeu e agrediu. Como diz Spurgeon:
“…Nosso amoroso Rei teria relações privadas governadas pelo espírito de amor e não pela regra da lei.…” (ibid.) e, como Seus imitadores, deve ser esta também a natureza de nossos relacionamentos interpessoais.
– Por isso mesmo, o Senhor Jesus afirma que não só não devemos nos desviar daqueles que pedem emprestado, mas que devemos dar a quem nos pedir.
Enquanto muitos avarentos, fogem daqueles que estão a pedir emprestado, o Senhor diz que devemos, a princípio, dar em vez de emprestar. Como afirma Spurgeon: “…Nosso espírito deve estar pronto para ajudar os necessitados por doação ou empréstimo – e não é muito provável que erremos pelo excesso nessa direção…” (ibid.)
– Vivemos dias em que se tem oferecido maior acesso à justiça na sociedade, onde há um aumento do individualismo e do egoísmo (II Tm.3:1-5), de modo que temos uma maior irreconciliabilidade entre as pessoas, e o número crescente de demandas judiciais é um exemplo claro disto.
– Não são poucos, aliás, os que cristãos se dizem ser que levam suas diferenças para a barra dos tribunais, inclusive quando as contendas envolvem irmãos na fé, o que, inclusive, afronta as próprias Escrituras (I Co.6:1-10). Isto tudo porque são pessoas que estão longe, muito longe do nível exigido por Jesus de Seus discípulos com relação aos relacionamentos interpessoais.
– É realmente muito triste vermos pessoas que dizem servir a Cristo mas que não querem sofrer dano algum, que querem o mal do próximo, que querem prevalecer a todo custo, não sabendo o que é renúncia, abnegação, que é o amor de Deus.
– Já o salmista dizia que quem faz mal ao próximo, aceita afronta contra o seu próximo e empresta o seu dinheiro com usura não habitará no tabernáculo de Deus nem habitará em Seu santo monte (Sl.15:1,3,5).
– Não é este, porém, o comportamento que o Senhor espera dos Seus discípulos. Será que estamos a cumprir as exigências da “lei do reino de Deus”? Pensemos nisto!
III – O AMOR NORTEIA A CONDUTA DO DISCÍPULO DE JESUS
– Depois de ter falado do homicídio, adultério, juramentos e sobre a pena de talião, Cristo vai como que concluir esta argumentação mostrando a essência da conduta dos Seus discípulos, a saber, o amor.
– Para demonstrar que se está agora em um parâmetro espiritual superior, conforme o próprio caráter divino, o Senhor Jesus traz um ensinamento pacífico que havia entre os mestres da lei segundo o qual se deveria amar o próximo e aborrecer o inimigo (Mt.5:43).
– Na verdade, não havia um mandamento explícito na lei que mandava aborrecer o inimigo, que mandava odiar o inimigo. O que havia era o comando constante de Lv.19:18, em que se diz que não se deve se vingar nem guardar ira contra os filhos de Israel e amar o próximo como a si mesmo.
– Assim, os doutores da lei interpretavam que o “próximo” era o “filho de Israel” e que, portanto, a ele se deveria amar, mas ao inimigo, aos outros povos, se deveria odiar, se deveria aborrecer e se baseavam no fato de que Deus havia determinado que eles destruíssem os primitivos habitantes de Canaã.
– Como afirma glosa constante da Cátena Áurea:
“…Mas deve-se ter em mente que, em todo o discurso da lei não estava escrito: “Você odiará o seu inimigo”, mas isso é dito em relação a uma tradição dos escribas, que pensavam que isso deveria ser acrescentado porque o Senhor ordenou aos filhos de Israel que perseguissem seus inimigos (Lv 26) e exterminassem Amaleque da face da terra (Ex 17).…” (Mt. 5:43-48. Disponível em: https://hjg.com.ar/catena/c63.html Acesso em 02 mar. 2022) (tradução Google de texto em espanhol).
OBS: A Cátena Áurea é uma compilação de comentários dos Pais da Igreja feitos aos Evangelhos, feita por Tomás de Aquino (1225-1274) entre 1262 e 1263, a pedido do Papa Urbano IV.
– No dizer de Agostinho (354-430), esta parte final do ensinamento, “…não é um preceito, mas uma condescendência com a debilidade…” (De sermone Domini 1,21. In: Catena aurea. Mt.5:43-48. Disponível em: https://hjg.com.ar/catena/c63.html Acesso em 02 mar. 2022) (tradução nossa de texto em espanhol).
– No entanto, não era este o real significado do mandamento, tanto que, em outras prescrições, a lei deixava bem claro que não se deveria desejar ou fazer mal ao inimigo, como se verifica, por exemplo, Ex.23:4, que manda reconduzir o boi ou jumento desgarrado do inimigo.
– É o que bem afirmou Charles Haddon Spurgeon (1834-1892), o príncipe dos pregadores britânicos, ao comentar sobre esta passagem:
“…Neste caso, um mandamento da Escritura tinha uma antítese humana ajustada a ele por mentes depravadas – e essa adição humana era maliciosa.
Este é um método comum – acrescentar ao ensino das Escrituras algo que parece brotar dele, ou ser uma inferência natural dele – algo que talvez seja falso e perverso.
Este é um triste crime contra a Palavra do Senhor. O Espírito Santo somente gerará Suas próprias palavras. Ele possui o preceito:
“Amarás o teu próximo”, mas Ele odeia o crescimento parasita de “odeie o seu inimigo”.
Esta última frase é destrutiva daquilo de que parece legitimamente crescer, já que aqueles que são aqui denominados inimigos são, de fato, próximos.…” (A quarta bem-aventurança. Sermão pregado na noite de 14/12/1873 no Tabernáculo Metropolitano. Disponível em: https://www.spurgeongems.org/sermon/chs3157.pdf Acesso em 02 mar. 2022) (tradução Google de texto em inglês).
– A partir do entendimento de que “próximo” era apenas o “filho de Israel” houve a inferência de que os inimigos deveriam ser odiados. No entanto, se este era o entendimento dado pelos mestres da lei, se era esta a
“justiça dos escribas e fariseus”, não era esta a conduta que deveria ser adotada pelos discípulos de Cristo
Jesus.
– Jesus reafirmaria este Seu ensino aqui no sermão do monte quando, respondendo precisamente a um doutor da lei sobre quem era o “próximo”, deixou-nos a parábola do bom samaritano (Lc.10:25-37), quando fez questão de mostrar que “próximo” é qualquer pessoa, é o outro, tendo, propositadamente, posto no papel de “próximo”, um samaritano, o povo mais odiado pelos judeus no seu tempo, a ponto de sequer haver comunicação entre eles (Jo.4:9 “in fine”).
– Se o “próximo” são todas as pessoas, é o outro que não eu, não há espaço algum para o acréscimo feito pelos mestres da lei, de que se deveria “odiar o inimigo”.
– O Senhor Jesus, retomando o real significado da lei mosaica, mandou, então, que Seus discípulos amassem os seus inimigos e bendissessem aos que os houvessem maldito, fizessem bem aos que os odiassem e orando pelos que os maltratassem e perseguissem (Mt.5:44).
– Neste Seu ensino, o Senhor Jesus estava nitidamente a nos mostrar que deveríamos ter, como critério do nosso relacionamento com o outro, o amor divino, o amor “agape” e não o amor humano, o amor “philia”.
— O amor mencionado nas Escrituras como sendo a essência divina é o chamado amor “agape” (άγάπη), assim denominado pela palavra grega utilizada em o Novo Testamento para esta espécie de amor. Com efeito, no grego, pelo menos quatro são as palavras usadas para “amor”, a saber:
a) “eros” (ερως) – esta palavra não é encontrada em o Novo Testamento e vem de “Eros”, que era uma das divindades menores da mitologia grega (o “cupido” dos romanos).
Este amor é o amor carnal, o instinto sexual, a atração física. Desta palavra grega temos palavras em português como “erotismo”, “erótico”, que bem descrevem a natureza deste amor. Este amor, de forma distorcida, é o difundido no mundo de hoje, dando origem a toda sorte de imoralidade e impureza sexual.
OBS: “…Nossa sociedade confunde o amor e a luxúria. Ao contrário da luxúria, o amor de Deus é dirigido exteriormente às outras pessoas, e não interiormente, a nós mesmos. É totalmente desinteressado. Esse tipo de amor é contrário às nossas inclinações naturais.…” (BÍBLIA DE ESTUDO APLICAÇÃO PESSOAL, nota a I Co.13:4-7, p.1802).
b) “storge” (στοργή) – amor existente entre pais e filhos, fruto da afeição parental, o amor mais sublime que existe entre os homens, como afirma o Senhor em Sua Palavra como vemos em Is.49:15 ou Is.66:13, ou quando considera a Deus como Pai.
c) “philia” (φιλία) – esta palavra já é encontrada em o Novo Testamento (II Pe.1:7, “amor fraternal” na Versão Almeida e Corrigida). É o amor emocional, sentimental, decorrente de uma atitude de simpatia, de empatia, é a amizade. Este tipo de amor permite-nos gostar daquilo que nos agrada. É um amor que nasce do valor que damos ao ente amado. É o amor característico entre os seres humanos.
d) “agape” – também se encontra esta palavra em o Novo Testamento. É a palavra utilizada todas as vezes em que se menciona um amor que tem como origem o próprio Deus, a começar do chamado ” texto áureo da
Bíblia”. É um amor que não leva em consideração o valor do ente amado, que não se importa em satisfação própria, mas que tem prazer tão somente no benefício do ente amado.
OBS: João Ferreira de Almeida, o primeiro tradutor da Bíblia para a língua portuguesa, querendo manter a distinção entre “philéo” e “agape” do texto original grego, traduziu “filéo” por “amor” e “agape” por “caridade”.
O uso da palavra “caridade” acabou causando alguma confusão, pois, através dos séculos(a Bíblia foi traduzida por Almeida no século XVII), a palavra “caridade” acabou adquirindo um outro significado, qual seja, o de ajuda aos pobres e necessitados, o de dar esmolas.
Por causa disso, foi a palavra substituída na Versão Revista e Atualizada de Almeida e em outras traduções posteriores. De qualquer maneira, quem utiliza o texto da Versão Revista e Corrigida de Almeida, não pode se confundir: “caridade” no texto quer dizer “amor divino”, tanto assim que Paulo faz questão de dizer que “caridade” não é “dar esmola aos pobres” (cfr. I Co.13:3).
– O amor de Deus é diferente do amor que tem nascimento no homem. Como disse Jesus a Nicodemos, quem nasce de novo, nasce da água e do Espírito, não nasce da carne, ou seja, da natureza pecaminosa do homem.
O homem é um ser sensível (embora, muitas vezes, o pecado esteja em estágio tão avançado que o homem se torna tão embrutecido que seja muito custoso encontrarmos alguma sensibilidade) e, como tal, ele chega a amar pela sua própria natureza.
Mas este amor proveniente do homem, este amor que tem fruto na natureza pecaminosa do homem, não é o amor de que estamos aqui a falar.
– Este amor que nasce do homem é egocêntrico, ou seja, busca os seus próprios interesses. Amamos porque o ente amado nos faz bem, nos traz algum benefício.
Amamos aquelas pessoas cuja companhia nos é agradável; amamos as coisas que nos trazem satisfação. Por isso, por exemplo, muitos amam o dinheiro, porque ele traz aos que o possuem coisas agradáveis, permitem a satisfação de suas necessidades.
Quem busca a Deus única e exclusivamente para ter benefícios desta comunhão vive este amor humano. Ama a Deus porque Ele lhe proporciona saúde, riqueza, prosperidade, mas, se vierem as dificuldades, as lutas e as provações, estas pessoas deixam de amar o Senhor, precisamente porque este amor não é o verdadeiro amor divino, o amor “agape”, mas apenas um amor emocional, sentimental, nascido na natureza carnal.
– O amor proveniente de Deus, o amor peculiar à natureza divina é o amor que leva em consideração o outro, não a si próprio. Deus não ama o homem porque tenha o homem algum valor diante de Deus.
O homem e toda a sua justiça, como bem descreveu o profeta, não passa de trapo de imundícia (Is.64:6). Diante do Senhor, o homem é como um vapor, é como a erva do campo (Tg.5:14; I Pe.1:24).
Apesar disto tudo, Deus nos ama e nos quer bem a todo instante e, neste amor, humanizou-Se e Se fez maldito para nos proporcionar o restabelecimento da comunhão perdida por causa do pecado e, assim, tornar possível que voltemos a viver eternamente na Sua companhia!
– A busca e o desenvolvimento deste amor em o nosso ser é o caminho a ser seguido pelo cristão. Formar Jesus em nós (cfr. Gl.4:9) nada mais é que conseguirmos amar como Jesus nos amou (Jo.15:9,10,12). Por isso, Paulo insistiu tanto com os coríntios para que trilhassem o caminho mais excelente, que é, precisamente, o da aquisição e prática do amor (I Co.12:31).
OBS: “…É impossível ter esse amor a menos que Deus nos ajude a colocar nossos próprios desejos naturais de lado, de forma que possamos amar a não esperar nada em troca. Desse modo, quanto mais nos tornarmos semelhantes a Cristo, mais amor mostraremos para com os outros.” (BÍBLIA DE ESTUDO APLICAÇÃO PESSOAL, nota a I Co.13.4-7, p.1602).
– É preciso ter amor para ser filho de Deus (I Jo.4:7) e, por isso, o amor é o pressuposto, é o elemento primeiro e indispensável para que alguém seja um cristão e possa ser um vaso de bênçãos nas mãos do Senhor.
O verdadeiro fruto do Espírito Santo, portanto, o resultado do novo nascimento outro não é senão a criação do amor divino no homem e a sua demonstração aos semelhantes e a todo o Universo.
OBS: “… O essencial na autêntica fé cristã é o amor segundo uma ética que não prejudique o próximo e que persevere na lealdade a Cristo e à Sua Palavra.” (BÍBLIA DE ESTUDO PENTECOSTAL, nota a I Co.13:4-7, p.1761).
– Por isso, o Senhor vai dizer que Seu discípulo tem de amar também o inimigo, porque o amor nasce de Deus e é indiferente quem seja o seu alvo.
O discípulo de Cristo é súdito do reino de Deus e, como afirma Spurgeon, “… O amor é agora a lei universal e nosso Rei, que o ordenou, é Ele mesmo o Modelo disso. Ele não a verá reduzida e colocada em um cenário de ódio. Que a graça impeça qualquer um de nós de cair nesse erro!…” (ibid.).
– A primeira conduta que se deveria ter era amor os inimigos. O amor de Deus, como vimos, é incondicional, não depende do ser amado, tem origem no próprio Deus, que é amor (I Jo.4:8).
Assim, o discípulo de Cristo deve amar a todos os homens, todos são “próximos”, independentemente de serem amigos ou inimigos.
– Este amor se demonstra por três atitudes. A primeira é a de bendizer os que nos maldizem. Nós sempre temos de falar bem das pessoas, mesmo que elas falem mal de nós.
Não podemos falar mal de pessoa alguma pois toda pessoa é imagem e semelhança de Deus, e, quando falamos mal de alguém, assumimos indevidamente o lugar de legislador e de juiz, que somente cabe ao Senhor, pois é Ele o legislador e juiz (Tg.4:11,12).
– Paulo, rememorando este ensino do Mestre, manda que os servos do Senhor abençoem os que nos perseguem e não amaldiçoem (Rm.12:14). Não só devemos falar bem das pessoas, mas também abençoá-las, pedir o bem de Deus para elas, desejando ardentemente que o melhor lhes aconteça em suas vidas.
– A segunda atitude é a de fazer bem aos que nos odeiam. O discípulo de Jesus tem a natureza divina e, portanto, faz sempre o bem. Imita o seu Senhor e Salvador que, neste mundo, andou fazendo o bem (At.10:38).
– Paulo haveria de rememorar este ensino do Senhor Jesus, ao dizer que se o inimigo tiver fome, devemos dar-lhe de comer; se tiver sede, devemos dar-lhe de beber, porque, fazendo isto, amontaremos brasas de fogo sobre a cabeça deles e, neste particular, o apóstolo está tão somente a relembrar o que já se encontrava nos provérbios de Salomão (Pv.25:21,22), a nos mostrar que Jesus não estava a inovar coisa alguma, mas a depurar os ensinamentos de acréscimos humanos despidos de base escriturística.
– A terceira atitude que demonstra este amor é orar pelos que nos maltratam e nos perseguem. O amor não se contenta apenas em querer e fazer o bem, mas em interceder em favor daqueles que são contra nós.
– Como afirma João Crisóstomo (347-407): “…Não é considerar seu inimigo aquele que lhe trata tão mal, mas ter uma ideia bem oposta disso.
Pois o Senhor não diz: Não odeie; mas “ame”. Ele não diz: Não lhes faça mal, mas: “Faça-lhes bem”. Até vai mais longe. Ele não comanda um amor comum e ordinário; mas que vai tão longe a ponto de “orar por eles”.…” (Homilia XVIII. Cit. Mt.5:43-48. n.18. Disponível em: http://www.clerus.org/bibliaclerusonline/pt/index.htm Acesso em 02 mar. 2022) (tradução Google de texto em francês).
– Devemos pedir a bênção divina para aqueles que se levantam contra nós. Mas não seria isto um contrassenso? Nenhum! O que Jesus faz continuamente desde que subiu aos céus? Interceder pelos homens, pelos transgressores, por todos os seres humanos (Is.53:12; Rm.8:34).
– Assim, quando estamos a orar pelos que nos maltratam e nos perseguem estamos a imitar o Senhor Jesus.
– Neste passo, aliás, é interessante observarmos que este comportamento que Cristo quer que tenhamos com os nossos inimigos nada mais é que a conduta que Ele teve com relação à humanidade. Desde a prática do pecado, havia uma inimizade entre Deus e os homens (Gn.3:15).
– O pecador é inimigo de Deus, é um transgressor dos mandamentos divinos, mas, mesmo diante deste estado de inimizade, Deus nos amou e provou Seu amor para conosco porque Cristo morreu por nós quando ainda éramos pecadores (Rm.5:8).
– Ainda que já estivesse na lei e nos profetas a exigência de um tal comportamento, o fato que ele só seria possível quando houvesse a obra redentora de Jesus na cruz do Calvário.
O amor de Deus somente poderia ser derramado em nossos corações pelo Espírito Santo (Rm.5:5) e o Espírito Santo somente poderia habitar no homem depois da ressurreição do Senhor Jesus (Jo.7:38,39).
– Mas, uma vez consumada a obra de Jesus (Jo.17:4), não há qualquer impedimento para que venhamos a ser templo do Espírito Santo (Jo.14:16,17; I Co.6:19), de sorte que não há alguém que seja, verdadeiramente, discípulo de Jesus não ter o amor de Deus e, portanto, não estar a amar os seus inimigos, bendizendo-os, fazendo-lhes o bem e orando por eles.
– É necessário observarmos que o discípulo de Cristo bem distingue entre o pecado e o pecador. O pecado deve ser odiado, evitado, devemos dele ter nojo.
Mas o pecador, pessoa humana que é, imagem e semelhança de Deus que é, deve ser amado e querido. Como diz Agostinho:
…Esta regra deve ser entendida neste sentido: que abominamos o inimigo pelo mal que se pode encontrar nele (isto é, a iniquidade), e que amamos o amigo pelo que há de bom nele (isto é, a racionalidade de um criatura racional).
Ouviu, mas não entendeu, o que foi dito aos antigos: “Você vai odiar seu inimigo”, os homens foram levados a odiar o homem, quando deveriam apenas odiar seu vício.
A estes, portanto, o Senhor corrige, quando acrescenta: “Digo-vos: Amai os vossos inimigos”. Como ele já havia dito (5:17): “Eu não vim para violar a lei, mas para cumpri-la”.
Também nos ordenar a amar nossos inimigos nos obriga a entender como podemos amar o mesmo homem, e odiá-lo por causa da culpa, e amá-lo por natureza.…” (Contra Faustum 19,24. In: Catena Aurea. Mt.5:43-48; Disponível em: https://hjg.com.ar/catena/c63.html Acesso em 02 mar. 2022) (tradução Google de texto em espanhol).
IV – A PERFEIÇÃO DO DISCÍPULO DE JESUS
– Após mostrar não só o alcance do que é o “próximo” na lei de Deus, como também o próprio alcance do amor, o Senhor Jesus mostra que Seus discípulos são filhos de Deus. Para que sejamos filhos do Pai que está nos céus, devemos amar (Mt.5:45).
– A salvação torna-nos filhos de Deus (Jo.1:12). Como deixamos de ter pecados, como passamos a ser considerados justos, como passamos a ter comunhão com Deus, recebemos o poder de sermos filhos de Deus, herdeiros de Deus e coerdeiros de Cristo (Rm.8:17).
A nova vida que recebemos pelo perdão dos pecados faz com que tenhamos comunhão com Deus e o Espírito de Deus testifica com o nosso espírito, que volta a ter relacionamento com Deus, que somos filhos de Deus (Rm.8:16).
– A adoção traz-nos a condição de filhos de Deus, mas somos filhos de Deus para sermos participantes da Sua natureza (II Pe.1:4), ou seja, para passarmos a ter as mesmas qualidades de nosso Pai, para sermos testemunhas Suas no meio de uma geração incrédula e perversa (Fp.2:15).
– É este o objetivo de Deus quando nos adotou como Seus filhos, algo muito diferente daquilo que apregoam por aí nestes dias de apostasia, em que a condição de “filhos de Deus” ou, como preferem dizer, “filhos do
Rei”, é um estímulo e incentivo para se procurar o enriquecimento material e o suplante de tudo quanto represente adversidade na nossa vida debaixo do sol.
– Se somos “filhos de Deus”, mister que tenhamos o mesmo DNA do nosso Pai e, por isso mesmo, devemos amar o próximo, porque Deus é amor (I Jo.4:8). Nós agora já somos filhos de Deus (I Jo.3:2) e, por isso, temos de amar assim como Jesus amou, porque Jesus é o primogênito e nosso “irmão mais velho” (Rm.8:29).
– O apóstolo João bem compreendeu isto ao dizer que “…Deus é amor e quem está em amor está em Deus, e Deus, nele” (I Jo.4:16).
Por isso mesmo, afirma: “…Se alguém diz: Eu amo a Deus e aborrece a seu irmão, é mentiroso. Pois quem não ama seu irmão, ao qual viu, como pode amar a Deus, a quem não viu? E d’Ele temos este mandamento: que quem ama a Deus, ame também seu irmão” (I Jo.4:20,21).
– Deus faz que o sol se levante sobre maus e bons e a chuva desça sobre justos e injustos. Assim, o Senhor não faz diferença entre os homens, de forma que todos são beneficiados por Ele.
Se somos Seus filhos, também devemos proceder da mesma maneira, ou seja, não podemos fazer distinção a quem fazer bem, a quem beneficiar. Devemos fazer o bem a todos os homens, assim como o nosso Pai.
– Nesta afirmação de Cristo no sermão do monte, vemos que não temos qualquer possibilidade de deixar de fazer o bem a alguém. Deus conhece todos os corações e é próprio da Divindade ter tal atributo (I Sm.16:7), atributo que é incomunicável, intransferível.
– Em sendo assim, Deus sabe quando uma pessoa é boa ou má, não Se deixa enganar, inclusive sabe se tal pessoa alcançará, ou não, a salvação, mas, mesmo assim, todos os dias, manda o sol e a chuva para todas as pessoas, tanto as boas quanto as más, tanto as que vão se salvar, quanto as que vão se perder.
– Se Deus, que tem este conhecimento, não deixa de fazer o bem a todos, porque nós, reles mortais, que não temos tal condição, que não sabemos sequer se uma pessoa é boa ou má (não nos esqueçamos de que Samuel era o homem mais santo de seu tempo e, mesmo assim, não podia conhecer o coração dos filhos mais velhos de Jessé), quanto mais se uma pessoa se salvará ou não, podemos deixar de fazer o bem para outrem? Por isso, com muito acerto, diz Tiago, o irmão do Senhor: “Aquele, pois, que sabe fazer o bem e o não faz comete pecado” (Tg.4:17).
– Nos dias difíceis que estamos a viver, muitos não só não estão de acordo com esta prescrição de Cristo, como ainda procuram encontrar justificativas para odiar os inimigos, para desejar mal aos outros, práticas como a “oração contrária” e tantas outras invencionices, que nada mais são que isto mesmo, descumprimento do padrão estabelecido por Nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo.
– Amar os que nos amam é algo que qualquer um faz, diz o Senhor Jesus. Com efeito, a mera demonstração do amor “philia” que, como já visto, é um amor que tem nascimento no ser humano, um amor interesseiro, um amor que busca a prevalência do próprio “eu”.
– O Senhor Jesus, inclusive, diz que o exercício deste amor não traz qualquer galardão e tal afirmação nos faz lembrar o ensino do apóstolo Paulo a respeito das obras praticadas pelos servos do Senhor (I Co.3:12-15).
– Neste ensino, o apóstolo nos mostra que as obras dos servos de Deus podem ser de seis qualidades, que ele intitula ouro, prata, pedras preciosas, madeira, feno e palha e que todas passarão pelo “fogo”, como identifica o critério de julgamento a ser feito pelo próprio Senhor Jesus, Aquele com quem está o galardão (Ap.22:12).
– Somente resistem ao fogo as obras que são ouro, prata e pedras preciosas, ou seja, as obras que são feitas, respectivamente, para a glória de Deus, para a salvação das almas e para o adorno do povo de Deus.
– As outras três qualidades de obra, madeira, feno e palha, não resistem ao fogo e representam as obras feitas para exaltação humana, que têm apenas aparência e nenhum resultado espiritual e que são dirigidas e planejadas pelo homem.
– Notamos, aqui, que, para que se tenha galardão, é necessário que haja abnegação, que não se adotem critérios humanos ou se leve em conta o “eu”.
Amar os que nos amam é não sair deste parâmetro humano, desta prevalência do egoísmo, de tal maneira que não há como se alcançar qualquer recompensa ou reconhecimento do Senhor sem que trilhemos o caminho do amor divino, do amor incondicional que alcança o inimigo.
– O Senhor Jesus, para Se fazer bem compreendido pelo Seu auditório, mostra com um exemplo de Seus dias como o amor apenas aos amigos, o amor interesseiro nada representava em termos espirituais.
– Diz ele que, segundo este critério, que era, como já vimos, defendido pelos doutores da lei, as pessoas mais execradas e odiadas dos judeus seria tido como cumpridor da lei: os publicanos.
– Os publicanos eram os cobradores de impostos, pessoas que recebiam do governo romano a autorização para cobrar os pesados tributos com que Roma castigava os povos que estavam sob seu domínio, entre os quais os judeus.
– Desde quando os judeus passaram a viver sob dominação estrangeira, a partir do retorno do cativeiro (Cf. Ed.9:8,9),
os vários impérios que se sucederam escalaram pessoas da própria nação judaica para lhes cobrar os impostos, pessoas que não eram bem vistas pela população, não só por causa de sua função, mas porque, além de serem consideradas traidoras da Pátria,
uma vez que contribuíam para o subjugo frente aos estrangeiros, eram também indivíduos que se aproveitavam da situação para se enriquecer, nem sempre legitimamente, como foi o caso dos Tobíadas, que, por terem construído uma sólida amizade com os gentios, associaram a ideia da cobrança de impostos à “contaminação”.
OBS: “…E em meio aos ricos e poderosos, existe a família Tobias (…). Durante o sumo sacerdócio de Onias acontece um estremecimento das normalmente calmas relações entre Judá e o Egito, não se sabe exatamente se por motivos tributários ou políticos.
José ben Tobias serve e intermediário para sanear a situação e, como prêmio, Ptolomeu III (246-221) o nomeia coletor dos impostos reais, um negócio lucrativo, que José estende com grande talento a várias cidades gregas e fenícias.
Suas atividades financeiras e diplomáticas transformam a família Tobias em pioneiros da intimidade com a população não-judaica do país. É uma ‘contaminação’, por enquanto restrita à alta classe metropolitana, sacerdotal e laica, envolvida nas finanças e nos negócios…” (BORGER, Hans. Uma história do povo judeu. 3.ed. São Paulo: Sefer, 2003, v.1, p.161)
– Assim, o Senhor Jesus mostra que os publicanos, considerados os mais imorais dos judeus, também amavam seus amigos e odiavam seus inimigos, de modo que proceder desta mesma forma não tinha qualquer significado espiritual, pois até mesmo a classe considerada mais pecadora da sociedade, por trair a própria nação judaica, usava este mesmo padrão de comportamento em suas relações interpessoais.
– Não é diferente em nossos dias. Se formos escolher os segmentos mais reprovados da sociedade, como, por exemplo, os criminosos, eles também se portam da mesma forma que os publicanos dos dias de Jesus.
Amam aqueles que os amam, favorecem e fazem o bem aos seus companheiros de organização criminosa, por quem até arriscam a própria vida, mas odeiam e detestam os inimigos, tratando-os com crueldade (basta ver o que os bandidos destas organizações fazem com policiais que acabam caindo nas suas mãos…).
– Assim, se amarmos apenas os que nos amam, não estaremos fazendo nada diferente do que faz esta gente que é considerada como a escória da moralidade e da dignidade, mesmo em uma sociedade que é parte do mundo e, como tal, está no maligno (I Jo.5:19). Como querer ser reconhecido como “filho de Deus” estando neste patamar tão baixo de conduta?
– O Senhor Jesus prossegue Seu ensino dizendo que há de mais ou extraordinário quando saudamos apenas os nossos irmãos (Mt.5:47).
Certamente, Cristo estava a Se referir ao costume judaico de somente saudar os demais israelitas, porque as demais pessoas, por serem gentias, eram consideradas imundas, cerimonialmente impuras e qualquer contato ou comunicação com elas levaria à impureza ritual, exigindo dos judeus que se retirassem, pelo menos até o final do dia, para proceder à devida purificação.
– A lei de Moisés já havia prescrito normas para a purificação ritual dos filhos de Israel, como nos casos de contato com corpos mortos (Lv.11:35,40; 17:15; 21:1), fluxo de substâncias orgânicas como as excreções e o próprio sangue (Lv.12:7; 15) ou mesmo da lepra (Lv.13, 14).
– Entretanto, a tradição judaica criou um sem número de regras para a purificação, o que se tornou uma obsessão entre os judeus (Mc.7:1-4).
– A partir desta distinção entre puros e impuros, criou-se a ideia da separação e da falta de contato entre os judeus e os gentios, a fim de que não houvesse a “contaminação”, o que se poderia dar até na frequência a certos lugares (Jo.18:28) ou na saudação e contato com alguém (Jo.4:9).
– No entanto, não era esta a conduta adotada pelo próprio Deus. O Senhor Jesus, em outra oportunidade, exatamente em Nazaré, cidade onde foi criado, bem mencionou isto ao mostrar que, por vezes, ao longo da história sagrada, a graça e a bênção divinas vieram para os gentios e não para os judeus, como nos casos da viúva de Sarepta de Sidom, a única a ter a provisão divina nos dias da seca ocasionada pelas palavras do profeta Elias e da cura do siro Naamã, o único leproso curado nos dias do profeta Eliseu (Lc.4:24-27).
– Deste modo, se Deus não faz distinção entre as pessoas para abençoá-las, também os Seus filhos não podem agir com acepção de pessoas, privilegiando este ou aquele por causa de origem, etnia, posição social ou qualquer outro elemento que gere uma injusta discriminação.
– O discípulo de Jesus Cristo deve agir como seu Mestre, que expulsou o demônio da filha da mulher siro-fenícia, mesmo tendo vindo às ovelhas perdidas da casa de Israel (Mt.15:21-28; Mc.7:24-20), milagre, aliás, que é registrado pelos dois evangelistas precisamente depois de Jesus ter confrontado com a tradição exclusivista e xenófoba dos escribas e fariseus.
– Este sectarismo é, ainda hoje, vivenciado por muitos que cristãos se dizem ser. Muitos põem acima de tudo a “denominação”, o “ministério”, a “organização eclesiástica” e não ultrapassam estas fronteiras criadas por tradições e por homens, deixando de exercer o amor e a fraternidade que aqui são ensinados pelo Senhor Jesus.
– É evidente que não há comunhão entre a luz e as trevas e que não devemos efetuar uma mistura entre o povo de Deus e o mundo, mas não é disto que Cristo está a falar. Está a demonstrar que o amor de Deus não dá espaço algum para o exclusivismo, para uma noção de superioridade em relação ao próximo, para uma indiferença em relação ao outro.
– Vejamos o exemplo que o próprio Jesus nos dá no Seu diálogo com a mulher samaritana (Jo.4:1-30), onde derruba uma série de preconceitos que haviam sido instituídos: a proibição de comunicação entre judeus e samaritanos, a proibição da conversa entre um homem e uma mulher num local público e ermo, a proibição de contato ou relação social com uma mulher sem moral familiar. Jesus, por amar aquela mulher e os habitantes de Sicar, superou todos estes obstáculos humanos. Assim, também, devemos fazer.
– Uma vez mais, o Senhor Jesus utiliza os publicanos como exemplo, pois eles também somente se saudavam entre si, até porque, por mexerem com moedas estrangeiras, quase sempre com efígie de deuses e imperadores romanos (Mt.22:129-21), eles eram considerados cerimonialmente impuros.
– O Senhor Jesus, então, finalizando esta parte do sermão, diz que Seus discípulos deveriam ser perfeitos, como era perfeito o Pai que está nos céus (Mt.5:48).
– Esta expressão de Jesus causa perplexidade, pois como é possível ser alguém perfeito como Deus? Estaria o Senhor Jesus afirmando que ninguém conseguiria atingir o patamar de espiritualidade que ele estava a ensinar?
– Por óbvio, temos que, por primeiro, não se pode, como muitos fazem, dizer que o patamar de espiritualidade constante do sermão do monte seria inatingível. Se fosse assim, o Senhor Jesus estaria a perder o Seu tempo, a falar sobre uma impossibilidade para os Seus discípulos.
– Não resta dúvida de que este patamar de espiritualidade não poderia ser alcançado pelo homem. Somente em Cristo é que podemos alcançá-lo.
Jesus subiu ao monte, sem que tivesse sido chamado por Deus para tanto, e levou conSigo os Seus discípulos (Mt.5:1), precisamente porque estava dando início a um novo tempo, pois Ele haveria de cumprir a lei e retirar o pecado do mundo, tornando, assim, possível o relacionamento, a amizade entre Deus e o homem.
– Assim, o que era impossível ao homem, em Cristo, tornou-se plenamente possível e factível. O patamar de espiritualidade trazido por Jesus, a “lei do reino de Deus” é algo que pode, sim, ser plenamente tornado realidade, porque “o reino de Deus está entre nós” (Lc.17:21).
– Mas o Senhor nos manda ser perfeitos, e nós não o somos, tanto que Cristo, após ter edificado a Sua igreja, pôs os ministérios querendo o aperfeiçoamento dos santos (Ef.4:11,12), para que todos cheguemos a varão perfeito, a estatura completa de Cristo (Ef.4:13), algo que nem mesmo o apóstolo Paulo disse ter alcançado (Fp.3:12) e que o apóstolo João disse ser um estágio posterior ao de filho de Deus (I Jo.3:1-3). Como entender isto?
– A palavra “perfeito” aqui é a palavra grega “teleios” (τέλειος), “…completo (em várias aplicações de trabalho, esforço, crescimento, caráter mental e moral etc); forma neutra (como substantivo, com 3588) integridade: – adulto, maduro, homem, perfeito…” (Bíblia de Estudo Palavras-Chave. Dicionário do Novo Testamento, verbete 5046, p.2422).
– Pelo que se verifica, portanto, a “perfeição’ aqui não é o estado de ausência de imperfeição, de ausência de falhas ou algo similar, mas um estado de completude, de integridade, um estado de comunhão com Deus, que permita o crescimento espiritual contínuo e o que o apóstolo Paulo chama de conformidade à imagem do Filho de Deus (Rm.8:29).
– Já com Abraão, o Senhor havia exigido esta perfeição (Gn.17:1) e a palavra ali utilizada é a palavra hebraica “tamim” (םימת), “…inteiro (literal, figurado ou moral); também (como substantivo) integridade, verdade: – sem mancha, sem defeito, inteiro, perfeito (em) sinceridade, sinceramente, (com) integridade, reto, irrepreensível, sincero, inculpável…” (Bíblia de Estudo Palavras-Chave. Dicionário do Antigo Testamento, verbete 8549, p. 2006).
– Nota-se, portanto, que não se trata de um estado de perfeição e impecabilidade, o que somente atingiremos quando formos glorificados, no dia do arrebatamento da Igreja, como disse o próprio apóstolo Paulo, mas de um estado de comunhão com Deus, no qual, sendo um com Ele, que é o objetivo da obra salvífica de Cristo (Cf. Jo.17:21), possamos ser cada vez mais parecidos com o Senhor Jesus, verdadeiros “cristãos”, para que todos possam glorificar ao nosso Pai que está nos céus (Mt.5:16).
– Jesus exige de nós que nos mantenhamos em contínua e total comunhão com Ele, para que possamos não mais viver mas Ele viver em nós (Gl.2:20) e, deste modo, crescermos espiritualmente a cada dia, ininterruptamente, demonstrando, deste modo, o amor de Deus em nosso relacionamento com os demais homens, sejam eles salvos ou não.
– Assim agindo, seremos verdadeiros, porque Jesus é a Verdade (Jo.14:6) e seremos semelhantes a Ele, sendo testemunhas de Cristo perante os homens. Estamos vivendo este patamar de espiritualidade?
Pensemos nisto!
Pr. Caramuru Afonso Francisco
Fonte: https://www.portalebd.org.br/classes/adultos/7379-licao-7-nao-retribua-pelos-padroes-humanos-i