A carnalidade na Igreja provoca dissensões, pelejas e conflitos que a falta de espiritualidade leva para serem resolvidos pelos homens do mundo.
INTRODUÇÃO
– Na sequência do estudo dos problemas enfrentados pela igreja em Corinto e que foram objeto da primeira carta de Paulo àqueles crentes, analisaremos, hoje, o capítulo 6, quando o apóstolo trata da litigiosidade intensa entre os crentes, a ponto de estarem levando seus conflitos para serem decididos pela Justiça romana naquela cidade.
– Um dos importantes aspectos a respeito da convivência dos crentes neste mundo é o comportamento do cristão diante dos litígios, conflitos e das injustiças, algo que o apóstolo, inspirado pelo Espírito Santo, ensina-nos como devemos proceder, ainda mais quando vivemos dias de multiplicação da iniquidade (Mt.24:12) e, consequentemente, da necessidade de se recorrer aos órgãos da Justiça, criada por Deus para castigar os maus (Rm.13:4).
I – A EXISTÊNCIA DE LITÍGIO ENTRE OS IRMÃOS DE CORINTO
– Temos visto ao longo deste trimestre letivo que, ao ter notícia dos familiares de Cloé a respeito do que estava a acontecer na igreja em Corinto, o apóstolo identificou dois problemas principais para tudo o que estava a ocorrer — a carnalidade e o menosprezo da mensagem da cruz.
– A carnalidade, além de gerar a imoralidade, que foi objeto da lição anterior, é a causa imediata para outro problema detectado pelo apóstolo, a saber, a intensa e crescente litigiosidade entre os irmãos.
– O próprio apóstolo, em sua carta aos gálatas, ao identificar as obras da carne (Gl.5:19-21), após elencar uma série de obras relacionadas com a imoralidade (prostituição, impureza, lascívia, idolatria, feitiçarias), enumera uma série de comportamentos relacionados com o dissenso, com a falta de compreensão, com o conflito de interesses entre as pessoas (inimizades, porfias, emulações, iras, pelejas, dissensões, heresias, invejas, homicídios) ou condutas que intensificam estes conflitos (bebedices, glutonarias).
– Assim, a existência de conflitos entre os irmãos da igreja em Corinto não era de se espantar, porque, sendo crentes carnais, inevitavelmente eles praticariam as obras da carne e uma das principais obras da carne é, precisamente, o comportamento litigioso, a conduta que gera conflito de interesses entre as pessoas.
– Mas o que é “litígio”? Afinal de contas, se Paulo está “censurando o litígio entre os irmãos”, como muitas versões bíblicas intitulam o tema do capítulo 6 da primeira carta aos coríntios, temos de saber, antes de mais nada, o que é “litígio”. “Litígio” vem da palavra latina “litis” que significa “desavença, rixa, disputa, questão judicial”.
Entre os romanos, a “litis” era o processo judicial e “litigiosus” o que gostava de processos, o que podemos hoje denominar, numa linguagem popular, de “encrenqueiro”.
– Atualmente, “lide”, na definição clássica do jurista italiano Francesco Carnelutti (1879-1965) é um “conflito de interesses qualificado por uma pretensão resistida”. Assim, haverá lide sempre que houver um conflito, ou seja, alguém deseja algo que outrem também deseja ou não quer que aquele primeiro tenha. Diante do conflito, está instaurada a “lide”.
– Em Corinto, como em toda cidade romana (lembremos que a Corinto dos dias do apóstolo Paulo, embora situada na Grécia, havia sido reconstruída pelos romanos e estruturada segundo seus conceitos), quando duas pessoas entravam em conflito, que não era resolvido por eles,
deveriam comparecer ao pretor, que era o magistrado encarregado da justiça que, então, após apreciar as versões de ambos, nomeava um juiz e as partes, então, aceitavam se submeter ao julgamento do juiz, num contrato que se denominava de “litiscontestação”.
Assim, para que se resolvesse um conflito, os interessados deveriam comparecer até o “Fórum”, lugar onde ficava o pretor e os juízes, a fim de admitirem que tinham um conflito entre si e que se sujeitavam à solução a ser dada pelo juiz a ser indicado o pretor.
– A existência de conflitos de interesses entre as pessoas é inevitável, visto que vivemos em um mundo pecaminoso, onde os homens rejeitam a orientação divina e buscam todos os seus interesses e não os de Deus.
Assim, como os homens são diferentes e se tornam competidores entre si, voltados para si mesmos, o litígio surge a cada momento.
Por isso, em todas as sociedades humanas, mesmo as mais primitivas, sempre se criaram mecanismos e instituições que pudessem resolver os conflitos de interesses entre as pessoas, a fim de que tais litígios não prejudicassem a própria convivência do grupo social.
– A existência de litígios, portanto, está vinculada à própria convivência dos homens num mundo onde há o pecado, tanto que, mesmo em relação ao povo escolhido de Deus, Israel, não deixou de existir litígios entre o povo.
Vemos no capítulo 18 de Êxodo que Moisés se desgastava grandemente na liderança do povo na solução de litígios e conflitos entre os israelitas, tendo, então, seu sogro, Jetro, sugerido a ele a organização de um sistema judiciário descentralizado, que resolvesse as causas entre o povo, somente deixando a ele, Moisés, a decisão das causas mais difíceis e importantes (Ex.18:21-26), uma orientação, aliás, que deveria ter sido observada por certos sistemas judiciários extremamente lentos, como o brasileiro…
– Na sequência da história de Israel, mesmo na própria entrega da lei, vemos que o Senhor estabeleceu a existência de um sistema judicial, tendo dado tanto aos anciãos quanto aos levitas o poder de julgar os israelitas, pois sabia que, mesmo em se tratando do povo de Deus, haveria sempre litígios entre os homens, diante da natureza pecaminosa ainda existente em cada ser humano.
A propósito, esta circunstância leva o homem a ter, em primeiro lugar, um conflito interno, que o apóstolo Paulo bem descreveu na carta aos romanos, entre a carne e o espírito (Rm. 7 e 8). Se o homem vive um conflito interno, como, então, não haveria de ter um conflito com os demais seres humanos?
– Jesus, ao proferir o sermão do monte, considerado o Seu “sermão ético”, também falou a respeito dos litígios, não os considerando algo que jamais aconteceria entre os Seus discípulos.
Embora tenha dito que os Seus discípulos são “pacificadores”, ou seja, pessoas cuja função é resolver os conflitos existentes entre as pessoas, trazendo-lhes a paz (Mt.5:9), não fugiu à realidade da existência de litígios, inclusive entre irmãos, advertindo que, em caso de desavenças, deveria haver prévia conciliação entre os adversários, para que então pudesse ser aceita a oferta feita a Deus, antes que fossem os litigantes à presença do juiz, ocasião em que não haveria qualquer lugar para a misericórdia (Mt.5:25,26).
II – A CENSURA DO APÓSTOLO AO LITÍGIO EXISTENTE ENTRE OS IRMÃOS DE CORINTO
– Vemos, portanto, que a existência de conflitos de interesses entre duas pessoas, mesmo duas pessoas que servem ao Senhor, não é algo impossível, nem algo que possa ser evitado a todo o custo. Vivemos no mundo e, por causa disso, haverá, sim, sempre desavenças e desentendimentos entre os crentes, mesmo no interior da igreja local. É algo com que temos de conviver e saber resolver.
– O problema na igreja de Corinto, portanto, não era a existência de litígios ou de conflitos, pois isto acontecia em toda igreja local, e Corinto não era, em absoluto, a primeira igreja gentílica que Paulo havia aberto durante seu profícuo trabalho missionário.
A propósito, a própria existência de crentes gentios havia sido motivo para que houvesse “não pequena discussão e contenda” entre os cristãos, motivo por que foi convocado o chamado “concílio de Jerusalém” (At.15:1,2).
– Paulo não estava a exigir dos crentes coríntios um estado supra-humano, a total ausência de litígios, pois, caso assim fosse, “então vos seria necessário sair do mundo” (I Co.5:10 “in fine”).
Deste modo, de pronto, não podemos interpretar o ensino do apóstolo como uma suposta proibição bíblica para que a pessoa tenha conflitos de interesses com alguém, mesmo um irmão em Cristo. Como dissemos, a existência de desavenças e conflitos é inevitável numa vida num mundo pecaminoso, onde vivemos um conflito interno entre carne e espírito.
– O que o apóstolo censura entre os irmãos de Corinto não é a existência de litígios, mas o fato de que os crentes de Corinto, por causa do partidarismo existente entre eles, estava dando preferência e prioridade às soluções de suas desavenças perante os juízes da cidade de Corinto e não perante os irmãos (I Co.6:1), ou seja,
os conflitos estavam sendo imediatamente levados para o Fórum de Corinto, antes que pudessem ser tratados no interior da própria igreja local, o que, pela sistemática romana, como vimos supra, significava um péssimo testemunho perante os gentios e os judeus.
– Paulo critica o fato de os crentes de Corinto, por causa da carnalidade reinante, não ter mais confiança na igreja, seja nas lideranças, seja nos demais irmãos, preferindo resolver seus conflitos com os irmãos perante os juízes de Corinto, pessoas infiéis, que não temiam a Deus e que viviam numa cidade onde a imoralidade e a perversidade dominavam, em vez de procurarem resolver as questões perante os crentes, perante aqueles que haviam sido salvos e remidos no sangue de Jesus.
– Haver litígios entre as pessoas é algo inevitável, mas desprezar a possibilidade de solução diante daqueles que têm o Espírito Santo, para, de imediato, sem qualquer tentativa de conciliação ou mediação por parte da igreja do Senhor, ir até autoridades civis, mas que são ímpias e nada sabem a respeito da Palavra de Deus, era algo censurável e que não podia ser admitido pelo apóstolo como sendo uma conduta própria de quem serve a Cristo Jesus.
– Paulo viu nesta atitude dos crentes de Corinto uma falta de discernimento espiritual a respeito de quem é a Igreja, do que ela representa para Deus.
Quando os crentes coríntios desprezavam a Igreja para tentar resolver seus conflitos e desavenças diante da autoridade civil, estavam deixando de entender que a Igreja é a agência do reino de Deus aqui na Terra, é uma nação formada e dirigida pelo Senhor Jesus, que tem todo o poder no céu e na terra (Mt.28:18), não podiam compreender que a Igreja é o único local na face da Terra que tem a sabedoria, a justiça, a santificação e a redenção (I Co.1:30).
– Dentro de sua carnalidade, que fazia com que os crentes de Corinto não tivessem muito conhecimento da Palavra de Deus e dessem mais ouvidos a seus instintos e interesses imediatos do que às “coisas de cima” e à eternidade,
a igreja de Corinto não tinha percebido que faziam parte de um povo que tinha a vida eterna, que era guiado e dirigido pelo Senhor Jesus, que havia, mesmo em Sua dimensão humana, com a ressurreição, Se tornado Todo-Poderoso e que, portanto, era um contrassenso correr atrás das autoridades civis, muitas vezes perversas e imersas no pecado (notadamente em Corinto) para a solução de suas diferenças.
Era uma atitude que muito se assemelhava ao que Judá havia feito nos dias de Jeremias, a “prática das duas maldades” – deixar o Senhor, manancial de águas vivas e cavar cisternas rotas, que não retêm as águas (Jr.2:13).
– Quando há um conflito de interesses entre dois irmãos em Cristo, algo inevitável, é imperioso saber-se a origem e o motivo deste conflito. É ele resultado de predomínio da carne sobre o nosso espírito? É ele motivado por um desejo, paixão ou vaidade que está em desacordo com a vontade do Senhor e a orientação do Espírito Santo para nossas vidas?
– A existência de um conflito de interesses entre dois irmãos em Cristo, que fazem parte de um só corpo, que têm um só Espírito, que foram chamados em uma só esperança, que possuem um só Senhor, uma só fé, um só batismo e um só Deus e Pai de todos é, evidentemente, algo estranho e anormal.
Resulta, como vimos, da nossa estada no mundo, onde temos aflições e somos atacados noite e dia pelo pecado, pelo mundo e pela carne.
Por isso, diante do seu aparecimento, deve ele ser resolvido o quanto antes (e resolver nada mais é que dar fim, dar cabo, terminar).
Mas, como a existência do conflito é algo que está em desacordo com a própria inserção dos crentes no corpo de Cristo, como se poderá resolvê-lo senão de um ponto-de-vista espiritual, senão através de homens espirituais, que têm a mente de Cristo, já que o homem natural não compreende as coisas do Espírito de Deus porque lhe parecem loucura e não pode entendê-las, porque elas se discernem espiritualmente (I Co.2:14)?
– A existência de um conflito de interesses entre dois servos do Senhor é, sobretudo, uma questão espiritual, que não pode ser resolvida fora dos limites da Igreja, pois só na Igreja é que habita o Espírito Santo (Jo.14:17), Espírito que o mundo não vê nem conhece, nem tampouco pode receber.
Assim, quando os crentes coríntios desprezavam a igreja e buscavam resolver suas questões imediatamente junto às autoridades civis de Corinto, tinha-se a demonstração clara da ignorância do que é a Igreja para os crentes daquela igreja local, mais uma comprovação de que tudo era animado pela carnalidade, estado que, como já vimos em lições anteriores, é resultado direto da falta de crescimento espiritual, crescimento que se dá pela graça e conhecimento de Jesus Cristo (II Pe.3:18).
– Se os crentes de Corinto entendessem o que é a Igreja, jamais desprezariam a solução dos conflitos por parte dos santos, por parte dos membros do corpo de Cristo para se submeterem às autoridades civis, ímpias e que não tinham condições de resolver as questões.
O desprezo da “solução doméstica” era efeito da falta de conhecimento das Escrituras, do sentido e do papel que tem a Igreja enquanto se encontra neste mundo aguardando a volta de Jesus.
– Observemos que estamos a tratar de litígio existente entre irmãos, ou seja, entre duas pessoas que são salvas pela fé em Cristo Jesus.
O apóstolo não tratava aqui de litígios entre irmãos e pessoas incrédulas, que deviam também ser abundantes, pois, lembremos, estamos em Corinto, uma cidade que era a mais importante da Grécia naquele tempo, local onde se encontravam pessoas de todas as partes do mundo e que tinham um intenso comércio entre si e, portanto, um local onde os litígios são muitos e frequentes (Santos, cidade paulista onde está o maior porto da América Latina, é um bom exemplo da grande quantidade de litígios que há numa cidade com as características de Corinto).
– Paulo alerta os crentes de Corinto de que a Igreja tanto é o depósito da sabedoria, justiça, santificação e redenção, que a ela foi destinada a tarefa de julgar o mundo por ocasião do reino milenial de Cristo (I Co.6:2).
A expressão do apóstolo dá-nos a entender que, durante os dezoito meses em que esteve em Corinto, o apóstolo ensinou-lhes a respeito da “doutrina das últimas coisas”, tendo, certamente, falado a respeito do reino milenial de Cristo, quando se cumprirão as profecias messiânicas constantes do Antigo Testamento, bem como as próprias palavras do Senhor Jesus de que os Seus apóstolos julgariam as tribos de Israel (Mt.19:28; Lc.22:30).
Mais tarde, este ensino oral de Paulo, aqui apenas mencionado de passagem, estaria explicitamente incorporado na Bíblia Sagrada, quando o apóstolo João teria a revelação do Apocalipse, quando, então, nos é dito claramente que a Igreja reinará com Cristo durante mil anos (Ap.20:4), sendo que uma das tarefas será a de desempenhar aquelas funções que, no passado, Jetro havia aconselhado Moisés a repartir com “homens capazes, tementes a Deus, homens de verdade, que aborreçam a avareza” (Ex.18:21).
– Negar que os filhos de Deus, salvos por Jesus Cristo, medeiem e solucionem as desavenças que existam entre os irmãos é negar a pessoas, que serão incumbidas do próprio Senhor de julgar as nações durante mil anos, de solucionar problemas mínimos e insignificantes, perto das questões que surgirão ao longo do reino milenial de Cristo.
A propósito, o fato de haver juízes no reino milenial de Cristo, período de esplendor para a humanidade, mostra-nos, uma vez mais, como a existência de litígios é algo inerente à humanidade e que perdurará enquanto o pecado não for extirpado de uma vez por todas, enquanto não houver novos céus e terra onde habite a justiça (II Pe.3:13).
– Quem não ter noção do que é a Igreja, despreza-a, tem-na como uma simples organização humana, religiosa, voltada ao transcendental, ou, o que é pior e muito comum nos dias de hoje, como uma empresa arrecadadora destinada a trazer benesses a certos grupos familiares e, mesmo, a certos segmentos da sociedade, mediante a assistência social.
A Igreja, porém, é muito mais do que isto, é o povo de Deus aqui na Terra, é a nação que traz a mensagem da salvação e da vida eterna à humanidade.
– Sendo o corpo de Cristo, que é a sabedoria, justiça, santificação e redenção de Deus, a Igreja é o único lugar onde se pode obter, diante de um conflito de interesses, a sua real solução, o seu total desaparecimento. Entre os homens, quem o diz são os próprios juristas, isto não é possível.
– Inúmeros estudos por parte dos juristas têm chegado à conclusão de que as soluções judiciais, muitas vezes (e, mesmo assim, cada vez menos) põem fim aos problemas legais e jurídicos, mas estão longe de resolver os conflitos sociais, as divergências existentes no seio da sociedade, muitas delas motivadas por uma injustiça inerente à própria organização social e por um histórico de mazelas, marginalizações e iniquidades.
A chamada “lide social” é mantida fora das questões judiciais, o que faz com que, na melhor das hipóteses, diante de um julgamento, uma das partes fique frustrada e ressentida, quando não todos os envolvidos.
Os principais estudiosos têm procurado descobrir meios pelos quais as pessoas obtenham, junto ao Poder Judiciário, não apenas a aplicação da lei ao caso concreto, mas a pacificação social, o fim do que chamam de “litigiosidade contida”.
OBS: “…Como assevera o autor [Kazuo Watanabe, observação nossa], dentro da normalidade os conflitos de interesse são solucionados sem a necessidade da intervenção estatal, através de negociação direta das partes interessadas ou por intermédio de terceiros (tais como parentes, vizinhos, amigos, líderes comunitários, advogados).
Mas nas comunidades mais populosas, as relações pessoais são formais e impessoais, circunstâncias que neutralizam a eficiência dos mecanismos extrajudiciais de resolução de conflitos de interesse.
E ao lado daqueles cuja solução é buscada junto ao Judiciário, remanescem outros, sem solução, muitas vezes com a renúncia total do direito pelo prejudicado, ensejando o surgimento do fenômeno da litigiosidade contida, extremamente perigoso para a estabilidade social, na medida em que, a par de representar um ingrediente a mais para a “panela de pressão” social, também por vezes acabam impondo soluções inadequadas, eventualmente à margem da ordem jurídica estabelecida.
Filosofia e características básicas do Juizado Especial de Pequenas Causas, in Juizado Especial de Pequenas Causas, obra coletiva, coordenação de Kazuo Watanabe, São Paulo, Edição RT, 1985, p. 2.…” (MARCATO, Antonio Carlos. Jan. 1998. Considerações sobre a tutela jurisdicional diferenciada. Nota 5.
Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3350 Acesso em 27 mar. 2009).
– A razão para esta insuficiência do julgamento humano em relação ao julgamento feito dentro da Igreja, nos litígios entre os irmãos, está na circunstância de que os salvos são “santos”, enquanto que os gentios, “injustos” (I Co.6:1).
A justiça de Deus é o Senhor Jesus Cristo (I Co.1:30) e não há como se julgar corretamente senão se fizer uso da sabedoria, sabedoria que é o próprio Cristo (I Co.1:30).
O princípio da sabedoria é o temor ao Senhor (Sl.111:10; Pv.9:10), sendo certo que só têm bom entendimento quem obedece a Deus.
Não foi por outro motivo que Salomão se destacou como grande julgador, porque havia recebido sabedoria da parte do Senhor, o que foi imediatamente reconhecido pelo povo de Deus (I Rs.3:16-28). A sabedoria vem do alto, da parte de Deus (Tg.3:17) e o fruto do exercício desta sabedoria outro não é senão a justiça e a paz (Tg.3:18).
OBS: Oportuno aqui reproduzir palavras do atual chefe da Igreja Romana que, por sua vez, reproduziu ensinamento de seu antecessor que, por sua biblicidade, transcrevemos:
“…Meu Venerável predecessor, o Papa João Paulo II, no Dia Mundial da Paz de 2002, ao ressaltar precisamente que a verdadeira paz é fruto da justiça, fazia notar que ‘a justiça humana é sempre frágil e imperfeita’ devendo ser ‘exercida e de certa maneira completada com o perdão que cura as feridas e restabelece em profundidade as relações humanas transtornadas’ (n. 3).…” (BENTO XVI. Mensagem do Santo Padre aos fiéis brasileiros por ocasião da Campanha da Fraternidade 2009. Disponível em: http://212.77.1.245/news_services/bulletin/news/23471.php?index=23471&po_date=25.02.2009&la ng=po Acesso em 27 mar. 2009).
– Deixar de resolver as questões diante dos santos, que são aqueles que, santificados por Jesus Cristo (I Co.1:1), passaram a ter comunhão com o Senhor, visto que o pecado que lhes fazia separação com Deus (Is.59:2), foi retirado (Ef.2:13,14), para ir perante quem não tem o Espírito de Deus e está preso ainda no pecado é algo que o apóstolo Paulo não podia, mesmo, admitir, é a demonstração clarevidente de falta de consciência de que representa a Igreja e qual o seu papel neste mundo e diante de Deus.
– Como se isto fosse ainda pouco, o apóstolo lembra os crentes de Corinto de que a Igreja, não só haverá de julgar os homens durante o reino milenial de Cristo, como também participará, com Cristo, do próprio julgamento dos anjos, seres superiores aos homens (Sl.8:5), mas que ficarão em posição inferior ao da Igreja, quando esta for desposada pelo Cordeiro (Ap.3:21).
A Igreja estará com o Senhor Jesus, ao Seu lado, quando for executado o juízo sobre os anjos rebeldes, a começar do diabo, no final dos tempos (Ap.20:10; Jd.6).
– Como se pode, pois, desprezar a Igreja na solução das questões litigiosas entre irmãos, diante de tamanha autoridade que o próprio Deus concedeu ao Seu povo? Infelizmente, não são apenas os crentes coríntios que desprezavam esta posição divina dada à Igreja, mas o mesmo se dá, e com relativa frequência, nos dias hodiernos, em relação aos crentes desta geração da iminência do arrebatamento.
– Além de os conflitos serem cada vez mais frequentes entre os irmãos, na Igreja de nossos dias, cada vez menos se recorre aos santos para a solução dos conflitos. Qualquer tentativa de orientação ou de ajuda a litígios existentes entre os irmãos é interpretado como “intromissão”, “abuso”, “violação de privacidade”, não admitindo os crentes que os santos lhes ajudem na solução de seus problemas. Preferem ir à “barra dos tribunais”, mesmo sendo os tribunais brasileiros, onde 78% das causas não são julgadas antes de um ano de duração do processo…
– No entanto, é entre os santos que teremos uma solução verdadeira para o conflito existente, pois não se terá a simples aplicação da lei ao caso concreto, mas, com a orientação do Espírito Santo, não só se resolverá a causa, relativa a coisas pertencentes a esta vida, como se impedirá que aquele conflito gere ressentimentos, mágoas, a chamada “litigiosidade contida”, que pode levar a uma situação de privação da graça de Deus (Hb.12:15).
– Embora seja inevitável, a existência de conflitos entre irmãos é algo que deve ser retirado do meio do povo de Deus, pois isto representa a quebra da união que deve existir no corpo de Cristo, pois o Senhor ordena a bênção e a vida quando os irmãos vivem em união (Sl.133:3), não quando há divergências e lutas fratricidas.
O aparecimento de conflitos não pode ser negligenciado nem as soluções devem se limitar à superficialidade da aplicação da lei, pois o que se tem de debelar é o lugar dado à carne, por onde o diabo pode agir e trazer morte, destruição e roubo da salvação (Ef.4:27; Jo.10:10; II Co.2:11).
Torna-se necessário evitar que haja, para usar a linguagem do jurista Kazuo Watanabe, “panelas de pressão” no seio da igreja local, em virtude de problemas mal-resolvidos, para que não ocorra a perdição dos litigantes.
Não é por outro motivo, aliás, que o “processo canônico”, como é conhecido o processo judicial estabelecido pela Igreja Romana, tem como objetivo “a salvação das almas”, pois é esta a finalidade da solução dos litígios entre irmãos quando dirigido e orientado pelos santos. Como costuma dizer um conhecido pastor evangélico, não há problema maior na igreja que os “crentes mal-resolvidos”.
OBS: “ Nas causas de transferência, apliquem-se as prescrições do can. 1747, respeitando-se a equidade canônica, e tendo diante dos olhos a salvação das almas, que, na Igreja, deve ser sempre a lei suprema…” (cânon 1752 do Código de Direito Canônico de 1983).
– Nos dias hodiernos, há um clamor por parte das autoridades judiciárias, notadamente as brasileiras, para que as pessoas busquem meios alternativos para a solução de seus conflitos.
O Estado, embora tenha chamado a si o monopólio da aplicação da justiça, não tem a mínima condição de cuidar dos milhões e milhões de litígios que surgem na sociedade, litígios estes cada vez mais intensos, uma vez que a multiplicação da iniquidade é a multiplicação da injustiça, pois iniquidade é injustiça.
Se o pecado aumenta, pois iniquidade é pecado (I Jo.3:4), temos que a injustiça também está aumentando e, diante desta situação, não há, mesmo, como o aparato judicial dos Estados darem conta dos conflitos de interesses.
– Mas, enquanto o governo clama para que as pessoas resolvam suas diferenças sem ter de recorrer ao Estado, inclusive criando alternativas para que isto aconteça (nos últimos anos, várias leis foram aprovadas com o objetivo de diminuir a sobrecarga do aparelho judicial, a ponto de até separações, divórcios e inventários poderem, hoje, ser feitas em tabelionatos, por escrituras públicas e não mais perante os juízes), muitos crentes esnobam a mediação dos santos, que lhes poderia trazer a verdadeira e definitiva solução para os seus litígios.
Quando acordaremos e entenderemos que o Senhor, na Sua infinita graça e misericórdia, sabendo que somos tendentes aos conflitos, criou alternativas, entre os santos, para real solução destes conflitos, impedindo que eles se tornem em armadilhas para nosso fracasso espiritual, mas oportunidades para que cresçamos na graça e no conhecimento de Cristo Jesus?
– No entanto, muitos estão voltados única e exclusivamente para as “coisas pertencentes a esta vida”, não pensam nem buscam “as coisas de cima” (Cl.3:1-3) e, diante desta carnalidade, não podem suportar “deixar de levar vantagem”, “ganhar os seus direitos”,
“mostrar com quem está lidando” e, diante destas mesquinharias, levam os irmãos a juízo, diante de infiéis, submetendo-se a uma solução que, quando muito, aplicará a lei ao caso concreto, mas que não resolverá os problemas espirituais decorrentes e que, muitas vezes, poderá resultar na privação da graça de Deus tanto para um quanto para todos os envolvidos na batalha judicial.
Será que é isto que temos feito? Será que é esta a visão que temos? O apóstolo alerta-nos para o perigo de uma atitude litigiosa, de um “amor às demandas”, que são um desserviço à pregação do Evangelho e à salvação das almas. Foi para isto que fomos salvos?
III – O COMPORTAMENTO DO CRISTÃO DIANTE DOS LITÍGIOS
– Além da falta de visão espiritual a respeito do papel da Igreja, o apóstolo aponta aos crentes de Corinto que a existência de litígios entre os irmãos perante os infiéis era, também, uma falta, porque estes litígios, relacionados com “coisas pertencentes a esta vida”, mostravam uma inversão de prioridades.
– O Senhor Jesus tinha sido muito claro ao mostrar que, entre Seus discípulos, há uma ordem de prioridades. Primeiro, vem o reino de Deus e a sua justiça (Mt.6:33).
Depois vêm todas as coisas pertencentes a esta vida, como a comida, a bebida e a vestimenta. Os gentios diferenciam-se dos servos do Senhor, porque, ao contrário dos cristãos, buscam prioritariamente satisfazer estas coisas da vida, guiando-se em busca da satisfação da comida, bebida e vestimenta, satisfação esta que, por ser movida pelos desejos e paixões, é incontrolável, insaciável (Ec.6:7).
– Os litígios originam-se, muitas das vezes, desta insaciabilidade, desta insatisfação que, acoplada ao egoísmo e individualismo, cada vez mais crescentes nos dias trabalhosos em que vivemos (II Tm.3:1-4), faz com que venhamos a ter maiores conflitos de interesses, visto que a ganância impera e todos querem sobrepor-se aos outros, a fim de ter “sucesso”, “fama”, “vitória”.
Daí porque a incompreensão tenha aumentado e os conflitos crescido vertiginosamente. Ninguém mais se entende com ninguém, exigindo a intervenção judicial nas mais simples questões.
– Na igreja em Corinto não era diferente, porque eles também eram guiados pela carne, eram crentes carnais, assim como os gentios.
A falta de espiritualidade faz com que os litígios aflorem grandemente, pois, como já visto, as obras da carne estão relacionadas com o desentendimento e a desavença entre os irmãos. É extremamente triste vermos, desde as lideranças, cada vez mais os crentes, por mais simples que sejam, devidamente munidos de seus advogados para resolver questões internas da igreja, esquecidos de que estão na presença do Juiz de toda a terra (Gn.18:25).
– A existência de litígios entre os irmãos e a incapacidade de resolvê-los internamente, com a ida dos litigantes aos tribunais é uma demonstração de que os crentes se preocupam mais com as coisas desta vida do que com a salvação, do que com a vida eterna. Se tivessem dado prioridade ao reino de Deus e a sua justiça, como diz o apóstolo, “sofreriam antes a injustiça, sofreriam antes o dano” (I Co.6:7).
– Na convivência com os irmãos, o crente deve ser movido pelo sentimento de que tanto ele quanto o irmão são partes do corpo de Cristo e que estão lutando para ir para o céu, para viverem eternamente com o Senhor.
Assim, necessita avaliar se vale a pena lutar por algo concernente a esta vida se o litígio, se o conflito representar o risco de perda da própria salvação ou da perda da salvação do irmão.
– O cristão é movido pelo amor a Deus e pelo amor ao próximo e, portanto, avalia se a luta por coisas desta vida é compensadora.
Não o será se a eventual vantagem a ser obtida, o eventual prejuízo a ser evitado representar ou a perda da sua alma, ou, então, a perda da alma daquele que o
está prejudicando. Trata-se de ponderar entre o que vale a pena e o que não vale. O que é mais importante: receber a quantia do empréstimo daquele irmão que não me pagou e magoá-lo a ponto de ele se decepcionar com Cristo ou sofrer o prejuízo e permitir que ele, no futuro, entenda que errou e se me peça perdão e, assim agindo, mesmo sem me pagar, possa perseverar até o fim e seja salvo?
– Paulo alertou os crentes coríntios de que não podiam eles se prender a um raciocínio voltado única e exclusivamente para esta vida e obter “vitórias” em “demandas judiciais” (“demanda” significa “processo”, “pretensão”), quando isto representasse um fracasso espiritual próprio ou do irmão com que se contende.
– Muitas vezes temos de renunciar aos nossos “direitos” para que mantenhamos nossa vida espiritual e continuemos a ser instrumentos da graça divina. Jesus exige de nós que renunciemos a nós mesmos se quisermos segui-lO, tendo, mesmo, dito que quem não renuncia não pode ser sequer Seu discípulo (Mt.16:24; Lc.14:33).
Se temos de renunciar a nós mesmos para sermos cristãos, como se explica que haja crentes que não aceitam abrir mão de seus direitos patrimoniais? Como ser capaz de renunciar ao seu próprio ser mas não a seus bens?
– O apóstolo não está a dizer que sempre temos de renunciar aos nossos direitos, que não podemos levar nossos conflitos relativos a coisas desta vida diante dos santos, mas está a nos mostrar que, mais importante que os “nossos direitos”, é a nossa salvação e a salvação do irmão que nos gerou dano, que praticou injustiça conosco.
O apóstolo reconhece que, muitas vezes, somos injustiçados e prejudicados por irmãos, mas este dano e injustiça (que terão a sua devida retribuição por parte do Senhor, pois tudo o que homem semeia, colhe — Gl.6:7-9) não são mais importantes do que a nossa salvação nem tampouco a salvação do nosso irmão. Devemos ajuntar tesouros nos céus, não, na terra (Mt.6:20).
– A solução de um litígio perante os santos não está baseado na aplicação da lei humana ao caso concreto, nem mesmo da lei divina.
Ela deve ser guiada pelo amor, pelo objetivo da “salvação das almas”, pela graça. Assim como Jesus nos salvou pela graça, pelo favor imerecido, devemos, também, nos orientar pela graça quando formos resolver os litígios entre os irmãos.
– Jesus contou uma parábola que bem ilustra esta situação, chamada pelos estudiosos da Bíblia de “parábola do credor incompassivo” (Mt.18:23-35). Ali o Senhor conta que o rei perdoou um súdito de uma dívida impossível de ser paga.
Logo em seguida, aquele devedor, já perdoado pelo rei, encontra uma pessoa que lhe devia uma pequena quantia e, como ele não o pagara, levou-o até a prisão.
O rei, ao saber que o seu ex-devedor não usara da mesma compaixão que o soberano lhe havia dado, revogou o perdão da dívida, tendo, então, o credor, pela sua falta de compaixão, sido preso e entregue aos atormentadores até que pagasse o que devia (o que jamais conseguiria fazer).
– Quando temos litígios com algum irmão, devemos levar em conta que nós, também, tínhamos um litígio com Deus, litígio impossível de ser solucionado, pois éramos culpados do pecado e da desobediência, merecendo a condenação à morte eterna, mas Jesus pagou o preço dos nossos pecados, dando-nos a salvação.
Se obtivemos o perdão de uma dívida impagável, por que não agirmos com o mesmo sentimento de compaixão com que Deus nos tratou com aqueles que nos agravam, que nos prejudicam, que são injustos conosco e que, ainda mais, são nossos irmãos em Cristo?
A nossa intransigência nas coisas pertencentes a esta vida, com coisas mínimas diante da eternidade, pode nos levar a sofrer o mesmo dano do credor incompassivo da parábola. Tomemos cuidado!
– Ninguém peca ao tentar receber o que lhe é devido, mesmo sendo um irmão em Cristo que o deve, mas, em primeiro lugar, deve tentar solucionar o caso diretamente com o irmão em Cristo, mediante uma conciliação, antes que leve o caso a uma terceira pessoa. É o que nos ensina o Senhor Jesus em Mt.18:15.
– Caso não se tenha acordo com o contato direto com o irmão com quem se tem o litígio, tente-se a mediação através de irmãos santos, idôneos (Mt.18:16), verdadeiros sucessores dos “homens capazes, tementes a Deus, homens de verdade, que aborreçam a avareza” dos dias de Jetro e de Moisés.
É lamentável que, em nossos dias, em vez de se buscar a mediação destes homens e mulheres de Deus, os irmãos já corram atrás de advogados ou pretensos causídicos, para que se resolva o problema, sem se verificar se se trata de “santos”, de pessoas que preencham os requisitos exigidos por Deus para a solução dos litígios dentro da casa do Senhor.
Além do mais, quando se procura um profissional sob este título, tem-se aqui um inconciliável conflito: quer-se resolver a questão junto a alguém que aborreça a avareza, mas a solução do caso, para o profissional, é indissociável de uma remuneração…
– Não tendo havido, ainda, a solução do problema, mesmo diante desta mediação, tem-se de levar o caso à igreja (Mt.18:17), a fim de que ela, como um todo, procure resolver a questão, compondo os litigantes, evitando o escândalo, atentando para a salvação das almas.
É neste momento que se deve pedir a intervenção daqueles que presidem sobre o povo, a fim de que haja a solução da questão.
– Caso não se tenha conseguido a conciliação, mesmo diante da intervenção da igreja, manda o Senhor que consideremos o faltoso como gentio e publicano (Mt.18:17).
Neste caso, se se verificar que o litígio permanece porque o faltoso não tem o temor de Deus, não é, verdadeiramente, um salvo, mas, sim, um lobo vestido de peles de cordeiro, então se estará diante de um gentio que se travestia de cristão, não havendo, pois, motivo algum para que o prejudicado leve o caso até a presença dos juízes, ainda que sejam tais autoridades ímpias ou injustas.
O faltoso não é, verdadeiramente, um irmão em Cristo e, portanto, ainda aos tribunais não se constitui em ofensa ao ensino que o apóstolo dá no capítulo 6 da primeira carta de Paulo aos coríntios.
– No entanto, ao longo de todo este trâmite, perceber-se que o irmão, ainda que faltoso e responsável pelo prejuízo, for um fraco na fé, alguém que ainda não tem Cristo formado nele e que a evolução do litígio perante mediadores ou perante a igreja,
ou a ida aos tribunais representará a sua morte espiritual, porá em risco a sua salvação, não deve o crente levar o caso adiante, mas, antes, sofrer o dano e a injustiça, a fim de que possa ganhar a alma do seu irmão. Aliás, o objetivo de todo este processo outro não é senão ganhar o irmão (Mt.18:15).
– Vale a pena ganharmos uma causa na justiça à custa da alma do nosso irmão, à custa do lançamento do irmão no lago de fogo e enxofre? Será que fazermos prevalecer qualquer coisa pertencente a esta vida sobre a alma do próximo não é uma grande injustiça, uma vez que uma alma vale mais do que o mundo inteiro (Sl.49:8)?
Assim agindo, não estaremos nós chamando para nós a ira do Senhor, prontos a receber o mesmo tratamento dado ao credor incompassivo?
– Este ensinamento do apóstolo vale, entretanto, para os casos em que está dentro de nossa disponibilidade o início do processo.
Casos há em que não cabe ao indivíduo o início, ou não, do processo, tendo em vista que há outros interesses envolvidos, superiores ao do indivíduo.
É o que ocorre, por exemplo, com a grande maioria dos processos criminais, em que, por força da legislação, a iniciativa do processo é do Estado, através do Ministério Público (promotores e procuradores de Justiça, na esfera estadual e procuradores da República, na esfera federal).
Nesta hipótese, o cristão não tem o “direito” de não noticiar a prática de um delito, de um crime, tendo, ainda, o dever de esclarecer as autoridades se o presenciou.
O crime é uma ofensa não só à vítima, mas a toda a sociedade, motivo por que não temos como impedir a chamada “persecução criminal”.
Aliás, assim já era na lei de Moisés, que mandava, inclusive, que, nos casos de crime de autoria desconhecida, toda a sociedade da cidade mais próxima oferecesse um sacrifício reparador pelo delito (Dt.21:1-9).
– Não se pode, pois, aplicar este ensino do apóstolo Paulo para justificar todos aqueles que forem cúmplices da prática de crimes, ainda que praticados por irmãos em Cristo, que não o denunciarem, supostamente por “amor ao irmão”, pois são ofensas que estão adiante do interesse da vítima, que interessam a toda a sociedade (Lv.5:1).
Como bem vimos na lição anterior, uma coisa é perdoar o ofensor e sofrer o dano ou a injustiça para ganhar a sua alma e outra, bem diferente, é encobrir e tolerar o pecado, que gera um mal para toda a igreja.
– Neste sentido, portanto, temos, na atual legislação brasileira, a questão melindrosa a respeito das ofensas físicas e morais ocorridas entre marido e mulher, entre pais e filhos, na intimidade do lar.
A lei brasileira, embora, num primeiro momento, tenha considerado que o tema de lesões corporais dependia da vontade da vítima em haver a persecução criminal, alterou, com a chamada “lei Maria da Penha” a sua orientação, entendendo que os fatos exigem sempre a intervenção do Estado.
No entanto, biblicamente, temos a situação de preservação da intimidade do lar, algo estabelecido como princípio pelo Senhor desde a instituição da família.
– Diante deste estado de coisas, é preciso, mesmo, cuidarmos dos casos que ocorrerem dentro das igrejas locais, com toda a sabedoria e com a orientação do Espírito Santo.
Situações há em que a divulgação de casos que forem devidamente tratados dentro dos lares com unção e graça do Senhor e que não saíram dos limites da intimidade familiar somente trará a destruição de famílias e a perda da salvação dos envolvidos.
Casos há, entretanto, em que, por não ter havido arrependimento de pecados, nem perdão, não restará senão tratar o faltoso como “gentio e publicano”.
São circunstâncias a serem tratadas caso a caso, tendo em vista, sempre, o bem supremo, que é a salvação das almas, pois a Igreja, como corpo de Cristo, não veio para condenar o mundo, mas para salvá-lo (Jo.12:47).
– Também não podemos deixar de considerar as situações em que, por força da legislação, a ida ao Judiciário é obrigatória, ainda que as partes estejam de acordo e não haja litígio real entre elas. É o caso, por exemplo, da venda de um imóvel enquanto está pendente um processo de inventário, ou do próprio processo de inventário judicial.
Tais circunstâncias, efetivamente, não representam violação do ensino paulino sobre demandas judiciais, pois, embora haja processo, não se terá propriamente um litígio, mas, sim, o que os juristas chamam de “administração pública de interesses privados”, ou seja, sujeição ao Judiciário da administração de casos de interesse dos particulares.
Estamos aqui diante de verdadeiros ônus da cidadania que os cristãos, como cidadãos tanto dos céus quanto da Terra, têm de cumprir (Rm.13:1,2).
– Mesmo nos casos em que se decidiu legitimamente ir a juízo, o Senhor Jesus também nos dá uma lição a respeito.
Diz que, a caminho do tribunal, sempre que possível se deve tentar a conciliação, o acordo. No sermão do monte, o Senhor nos ensina o que, posteriormente, virou um provérbio popular que, por ter base bíblica, deve ser devidamente seguido pelos filhos de Deus: “um mau acordo é sempre melhor do que uma boa demanda” (Mt.5:25,26).
– O Senhor diz que é sempre melhor conciliar-se com o adversário antes de se chegar à presença do juiz. Nos últimos anos, até por força da descomunal quantidade de processos que inviabilizou todo o Judiciário brasileiro, o Conselho Nacional de Justiça tem se esforçado para convencer o povo brasileiro a buscar sempre o caminho da conciliação.
O Movimento Nacional da Conciliação tem sido um programa levado a efeito pelo Conselho Nacional de Justiça para forçar as pessoas a tentar fazer acordos, não esperando a cada vez mais difícil e demorada solução judicial para um determinado caso.
A lei brasileira, inclusive, considera como dever do juiz tentar obter a conciliação entre as partes (art. 125, IV do Código de Processo Civil; art. 764 da Consolidação das Leis do Trabalho).
– Assim, ainda que se tenha decidido válida e legitimamente ingressar em juízo, porque isto não põe em risco a salvação das almas, deve o cristão buscar sempre uma forma de obter um acordo antes que se tenha de ir à presença do juiz, como também não se fechar a uma conciliação que venha a ser proposta pelo próprio juiz em audiência.
O cristão sempre dará bom testemunho em se mostrando flexível e ciente de que as coisas pertencentes a esta vida não valem mais do que a salvação.
– Quando formos a juízo, aliás, devemos observar a recomendação do Senhor Jesus. Ele diz que não sairemos diante do juiz antes de pagarmos o último ceitil, i.e., numa linguagem atual, o último centavo (Mt.5:26).
Não podemos nos esquecer que somos Seus discípulos e, como tal, devemos ser irrepreensíveis diante dos homens (I Ts.5:23). Portanto, jamais o Senhor permitirá que “tiremos vantagem” de terceiros em demandas judiciais.
Deus não Se deixa escarnecer e, por isso, se formos temerariamente aos tribunais, não nos iludamos: o Senhor diz que de lá não sairemos enquanto não formos devidamente justiçados.
O ímpio pode ser que leve vantagem diante de uma justiça falha como é a justiça humana, mas não os filhos de Deus. Lembremos que não são os homens que nos sentenciarão, mas que é Deus que nos justifica (Is.50:8; Rm.8:33).
Se estivermos com a verdade, seremos mais do que vencedores, porque estaremos com Cristo. Entretanto, se estivermos com esperteza, malícia e malandragem, ai de nós!
Por isso, amados, não ingressemos em aventuras jurídicas nem em espertezas judiciais, tão propaladas e defendidas por muitos nos dias de hoje, pois nosso compromisso é com o Senhor.
– Como temos procedido na solução dos conflitos que, inevitavelmente, temos com o próximo? Como temos agido com relação aos nossos irmãos em Cristo? Esta conduta revelará se somos, ou não, verdadeiros filhos de Deus, pessoas realmente salvas por Nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo. O apóstolo faz questão de mostrar que os injustos não herdarão o reino de Deus (I Co.6:9). Temos sido justos?
– Lembremos que “justiça” não é “vingança”. Diante do aumento da criminalidade e da violência em nossos dias, é comum vermos pessoas que foram vítimas de crimes bárbaros ou familiares de vítimas fatais clamarem, no calor dos acontecimentos, por “justiça”.
Há, mesmo, casos que revoltam a população, que invadem as ruas, quando não as delegacias de polícia e presídios, para atacarem e lincharem os criminosos, muitos deles verdadeiras bestas ruins (I Co.15:32; Tt.1:12), animais irracionais (II Pe.2:12; Jd.10: Jn.3:7; 4:11). Acham que assim agindo, estão “fazendo justiça”, quando, na verdade, estão apenas se vingando, praticando “vingança”.
– Vingança não é justiça e não pode ser praticada pelo homem, pois a vingança pertence única e exclusivamente ao Senhor, que não a deu para qualquer outro ser (Dt.32:35; Rm.12:19; Hb.10:30).
Quando alguém resolve se vingar de outrem, ainda que por intermédio da Justiça, está pecando contra o Senhor, tomando para si algo que não lhe pertence. O cristão, coerdeiro de Cristo, deve ter a mesma natureza dEle, ou seja, não pode querer se vingar, mas, sim, buscar salvar os homens, mostrando-lhe o amor.
– Quando deixamos de lado os interesses nossos pelos de Cristo Jesus (Fp.2:21), quando agimos animados pelo amor divino, que não busca os seus interesses (I Co.13:5), certamente teremos muito diminuída a nossa litigiosidade, a nossa belicosidade e seremos muito mais flexíveis e suportaremos, por amor à alma do próximo, eventuais danos e injustiças materiais que venhamos a sofrer na caminhada desta vida.
Afinal de contas, diz o apóstolo, não somos devassos, idólatras, adúlteros, efeminados, sodomitas, ladrões, avarentos, bêbados, maldizentes ou roubadores, que não herdarão o reino de Deus, mas somos lavados, santificados e justificados em nome do Senhor Jesus e pelo Espírito do nosso Deus (I Co.6:11,12). Temos correspondido a esta descrição de crentes em nossas demandas judiciais?
Prof. Dr. Caramuru Afonso Francisco
Vídeo: https://youtu.be/ONOPQNZ57sA