INTRODUÇÃO
O capítulo 4 da Segunda Carta de Paulo a Timóteo contém as últimas palavras escritas do apóstolo, que são conhecidas da cristandade.
Apesar da condição pessoal em que se encontrava, a sua primeira preocupação não era consigo mesmo, mas, sim, com o ministério da pregação da Palavra de Deus.
Por isso, ele parte para o encerramento da sua última carta instando a Timóteo que prosseguisse firme na proclamação do Evangelho: “[…] pregues a palavra, instes a tempo e fora de tempo, redarguas, repreendas, exortes, com toda a longanimidade e doutrina” (2 Tm 4.1,2).
A carta é repleta de apelos, incentivos e orientações para que o jovem ministro continuasse o serviço de pregação e defesa do Evangelho.
Em 2 Timóteo 4.1, Paulo utiliza novamente a expressão “conjuro-te” (no grego, diamartyromai; um apelo solene), como já fizera em 1 Timóteo 5.21.
Na primeira carta, o apelo dizia respeito ao emprego da imparcialidade na disciplina dos presbíteros. Agora, a conclamação de Paulo visa dar uma incumbência missional a Timóteo.
Como analisa Donald Guthrie: “O caráter solene da presente incumbência é duplamente comovente, pois é o conselho de despedida do idoso guerreiro ao seu jovem, e um tanto tímido, enviado”.
A ênfase de Paulo é clara especialmente pelo uso de diferentes verbos, com os quais demonstra a diversidade de formas que Timóteo deveria usar para pregar a Palavra.
Aliás, não podemos também nos esquecer da incisividade da expressão “pregues a palavra”, que tem a ver com o zelo com o conteúdo escriturístico. Paulo adverte a Timóteo que pregasse a palavra “a tempo e fora de tempo”, sendo perseverante na exposição da correta doutrina (4.2).
O jovem pastor deveria preservar a essência da verdade revelada apesar do desejo dos ouvintes. Esta era uma advertência essencial, inclusive porque o apóstolo já previa tempos em que as multidões iriam rejeitar a “sã doutrina” — a doutrina ortodoxa, pura, como contida na Palavra de Deus —, preferindo mensagens que estivessem segundo os seus desejos pecaminosos.
Pelo emprego de distintos verbos, entendemos que a variação na forma de pregar poderia ocorrer, porém sempre mantendo o conteúdo: a Palavra.
Mesmo sendo um profundo conhecedor da filosofia e poesia do seu tempo, além de questões políticas e culturais, Paulo não deixa dúvida de que o ministério pastoral deve ser dedicado à exposição das Escrituras.
Rejeição à Sã Doutrina
Logo após recomendar a Timóteo plena dedicação ao serviço da pregação, o velho apóstolo indica as razões da sua tão ardente exortação:
“Porque virá tempo em que não sofrerão a sã doutrina; mas, tendo comichão nos ouvidos, amontoarão para si doutores conforme as suas próprias concupiscências; e desviarão os ouvidos da verdade, voltando às fábulas.” (2 Tm 4.3,4)
Paulo estava desenhando profeticamente o quadro que vemos hoje. Cresce o número de “doutores” que torcem as Escrituras a partir das suas concepções, a fim de ajustar os seus ensinos aos desejos dos seus ouvintes (4.3). Em tais igrejas, nada mais é pecado, nem mesmo a homossexualidade. Em nome de uma “teologia inclusiva”, rejeitam o que dizem as Escrituras (Lv 20.13; Rm 1.24-28; 1 Co 6.10).
Sempre que se rejeita algum trecho da Bíblia e produzem-se interpretações que atendem aos nossos próprios desejos, opera-se um mortal desvio da verdade, culminando em apostasia (2 Tm 4.4; 1 Tm 4.1,2). Rejeitar as Escrituras, ainda que apenas um trecho, é um perigo gravíssimo, pois a Bíblia toda é divinamente inspirada (2 Tm 3.16).
Não é a Palavra de Deus que deve amoldar-se às nossas preconcepções e desejos. Nós é que devemos renunciar a nós mesmos e submetermo-nos a ela.
O Tempo da Partida
Era o ano 67 da Era Cristã. Nero, um dos mais sanguinários imperadores romanos, que ordenou a execução da própria mãe, havia desencadeado uma terrível perseguição aos cristãos, a quem atribuiu a autoria do incêndio ocorrido em Roma no ano 64 d.C.
As prisões e os martírios multiplicavam-se por todo o império. Roma era uma cidade espetáculo com diversas atrocidades praticadas. Corpos de cristãos atados em postes ardiam em chamas.
Paulo foi uma das vítimas de Nero.
Foi de uma das cadeias romanas, possivelmente acorrentado (2 Tm 1.16) e esperando pela sua execução, que ele escreveu a Timóteo, pedindo que fosse vê-lo depressa. A sua consciência da proximidade da morte era evidente: “Porque eu já estou sendo oferecido por aspersão de sacrifício, e o tempo da minha partida está próximo” (2 Tm 4.6).
Essa franqueza revela-nos um dos principais traços característicos da personalidade de Paulo: autenticidade. Como um cristão autêntico, ele não usava de quaisquer expedientes que pudessem pô-lo como um totem ou ídolo, seja ressaltando experiências espirituais extraordinárias, seja escondendo aspectos negativos da sua vida cristã, como, por exemplo, as suas fraquezas.
A Segunda Carta a Timóteo talvez seja o texto que revela um Paulo ainda mais humano. Frases como “o tempo da minha partida está próximo”, “procura vir ter comigo depressa” e “todos me desamparam” mostram um homem sem nenhum tipo de arroubo, bem consciente da sua falibilidade.
Isso não conflita com o fato de que, por muito tempo, Paulo teve a expectativa de que Cristo voltaria ainda nos seus dias (1 Co 15.51; 1 Ts 4.17). Em princípio, este deve ser o anseio e a esperança de todo cristão (2 Pe 3.9-14; 1 Jo 2.18; 3.2,3); logo, não poderia ser diferente com Paulo.
Apesar dessa expectação escatológica, ele mesmo afirmava que o conhecimento do que haveria de acontecer a ele durante o seu ministério era revelado a ele progressivamente: “E, agora, eis que, ligado eu pelo espírito, vou para Jerusalém, não sabendo o que lá me há de acontecer, senão o que o Espírito Santo, de cidade em cidade, me revela, dizendo que me esperam prisões e tribulações” (At 20.22,23).
Dessa forma, as circunstâncias que Paulo passou a viver produziram nele o entendimento de que o seu encontro com Cristo provavelmente não se daria por meio do arrebatamento, como ele esperava.
O apóstolo precisaria, como tantos outros santos, passar pela morte e aguardar o dia da ressurreição, como já havia ensinado para consolo dos cristãos (1 Co 15.12-23,51-57; 1 Ts 4.13-18).
Isso está explícito na referência que fez ao recebimento da “coroa da justiça”, a recompensa que Paulo espera receber do justo Juiz “naquele Dia” (4.8) perante o Tribunal de Cristo (1 Co 3.11-14; 2 Co 5.10).
Preparando a Transição
Em 2 Timóteo 4.6, Paulo indica claramente que o seu enfático propósito com o encorajamento e as recomendações transmitidas ao seu fiel cooperador era passar-lhe o cajado, a tocha ministerial. O apóstolo tinha plena consciência da iminência da sua morte.
No versículo imediatamente anterior (4.5), o apóstolo fecha a frase com a sentença “cumpre o teu ministério”, enquanto abre a próxima seção indicando o porquê: “Porque eu já estou sendo oferecido por aspersão de sacrifício, e o tempo da minha partida está próximo” (4.6).
Esse é um grande sinal de maturidade e convicção espiritual. Paulo foi um líder extraordinário. Além de cumprir o seu ministério, soube formar outros líderes, dando-lhes oportunidade e espaço para servir. Já no fim da vida, teve a tranquilidade de comissionar os seus auxiliares, especialmente Timóteo, a dar prosseguimento na obra de propagação do evangelho.
Um dos sinais da boa liderança é uma transição tranquila. Paulo combatera o “bom combate”, enfrentou oposição de todos os lados (2 Co 7.5; 11.26), batalhas espirituais (1 Ts 2.18; 2.8; 2 Co 12.7) e fortes resistências ao seu ministério, como, por exemplo, a de certo Alexandre, o latoeiro, que lhe causou muitos males (2 Tm 4.14). O apóstolo, entretanto, permaneceu firme e concluiu a sua carreira sem perder a fé.
Oferecido como Libação
Em 2 Timóteo 4.6, Paulo volta a usar a mesma figura de linguagem que usou em Filipenses 2.17. A sua vida estava sendo oferecida como “libação” ou “aspersão de sacrifício”; uma demonstração concreta da sua entrega pessoal à causa do evangelho; do seu “amor sacrificial pelos seus filhos espirituais na fé”.5 Paulo recorre, em analogia, ao modelo sacrificial retratado nas Escrituras.
O que isso significa? Que Paulo não reteve a sua vida para si mesmo em momento algum, mas deixou-se gastar completamente para alcançar muitas almas para Cristo (At 20.24; 2 Co 12.15).
O resultado do seu trabalho alcançaria bilhões de pessoas em todas as eras da igreja. Quase 2 mil anos depois, continuamos sendo edificados pelo seu exemplo e palavras.
Assim como Paulo, milhares de cristãos têm sido martirizados ao longo de toda a História da Igreja. Em nossos dias, muitos estão sob forte perseguição por causa da fé em Cristo em países como Afeganistão, Coreia do Norte, Somália e muitos outros.
A Portas Abertas, conhecida organização cristã internacional fundada em 1955 pelo jovem missionário holandês Irmão André, apresenta a Lista Mundial da Perseguição 2023 no seu site: www.portasabertas.org.br. Há perseguição extrema ou severa em 50 países. Oremos por eles! E oremos também pelo Brasil para que continuemos tendo liberdade religiosa.
Recordemos que a exortação de Paulo a Timóteo não é o ativismo político, mas a oração: “Admoesto-te, pois, antes de tudo, que se façam deprecações, orações, intercessões e ações de graças por todos os homens, pelos reis e por todos os que estão em eminência, para que tenhamos uma vida quieta e sossegada, em toda a piedade e honestidade” (1 Tm 2.1,2).
O Epílogo Paulino
Paulo encaminha-se para o fim da sua carta fazendo um forte apelo ao seu jovem e fiel cooperador: “Procura vir ter comigo depressa. […] antes do inverno” (4.9,21).
A indicação do tempo oportuno (“antes do inverno”) tem uma explicação objetiva: naquela época, as navegações costumavam ser interrompidas na estação invernosa, geralmente entre novembro e março.
Caso se atrasasse, o tempo de chegada de Timóteo a Roma seria muito prolongado em função do inverno. Paulo também menciona a necessidade da sua capa, que deixara em Trôade (4.13) e que lhe era útil para protegê-lo do frio.
Não se sabe se Timóteo chegou a Roma a tempo de rever Paulo e entregar-lhe as suas encomendas (a capa, os livros e os pergaminhos).
Historiadores clássicos, como Eusébio de Cesareia, registram que Paulo foi martirizado por ordem de Nero. Isso deve ter ocorrido ainda no ano 67 d.C. Como já registramos, Nero suicidou-se em junho de 68 d.C.
As Decepções de Paulo
Como todo grande líder, Paulo também experimentou decepções com os seus liderados. Na verdade, o fim da vida do apóstolo não foi muito animador no que diz respeito à assistência dos seus companheiros.
Isso acontece muito, e o cenário evangélico infelizmente não escapa disso. Muitos líderes influentes sofrem terrível abandono quando deixam as suas posições. Alguns liderados parecem ser muito leais aos cargos, e não às pessoas.
Paulo cita nominalmente Demas, que estava entre os seus colaboradores por ocasião da sua primeira prisão em Roma, ao lado de Lucas (Cl 4.14).
Talvez a intensidade das últimas perseguições tenha-o desanimado, “amando o presente século”, expressão que indica que ele trocou as promessas de uma recompensa celestial, pelo sofrimento como cristão, por alguma facilidade ou oportunidade da vida presente.
Outros cooperadores certamente se deslocaram a serviço da obra de Deus, como Crescente e Tito (4.10), e o próprio Tíquico, que Paulo enviou a Éfeso, provavelmente para substituir Timóteo na sua ausência (4.12).
De qualquer sorte, por ocasião da “primeira defesa”, a audiência preliminar a que Paulo foi submetido (4.16), “todos” haviam desamparado o apóstolo, certamente temerosos diante da implacável e cruel perseguição de Nero.
Professor(a), para conhecer mais a respeito dos temas das lições, adquira o livro do trimestre: QUEIROZ, Silas. Sejam Firmes: Ensino Sadio e Caráter Santo nas Cartas Pastorais. Rio de Janeiro: CPAD, 2023.
Fonte: https://www.escoladominical.com.br/2023/09/14/licao-12-venha-depressa/